quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Physis, Natura - Heidegger e Merleau-Ponty


Physis, Natura – Heidegger and Merleau-Ponty

Benedito Nunes

Professor-titular aposentado da UFPa


RESUMO

Merleau-Ponty, já ligado, em A fenomenologia da percepção, ao Lebenswelt do último Husserl e ao ser-no-mundo de Heidegger, procurará manter com a ontologia deste, em sua última e inacabada obra O visível e o invisível, mais estreita ligação, mormente em trono da questão da linguagem. Não obstante com a generalidade da noção de carne, aplicada à Natureza, e também ao corpo humano, enquanto fundante de novo Cogito, uma categoria que repele a antecedência do Dasein, sem o qual não haverá mundo atual.

Palavras-chave: Linguagem, Carne, Corpo, Natureza, Mundo.

ABSTRACT

Merleau-Ponty, already connected in The Phenomenology of Perception, to the Lebenswelt of the late Husserl and the Being - in - the - World of Heidegger, seeks to closely maintain his ontology in his final and unfinished work The Visible and the Invisible, principally in terms of the question of language. Nonetheless, there is the generality of the notion of flesh, applied to Nature, as well as to the human body, as the basis for the new Cogito, a category that repels the precedence of Dasein, without which there would be no world.

Keywords: Language, Flesh, Body, Nature, World.





Heidegger viu na physis o modo grego antigo do ser: o surgimento ou presença manifesta, que se modificou, no âmbito da Física moderna, demarcado pelo termo latino natura, em movimento dos corpos, objeto de estudo iniciado por Descartes e Galileu e continuado pela investigação dos organismos desde o século XIX, pelo qual Merleau-Ponty se interessará já nos seus cursos de 56/57 e 57/58 (O conceito de Natureza), bem como em um dos últimos (Nature et Logos: Le corps humain) por ele proferido em 59/60.

Publicada em 1945, La Phénoménologie de la perception, de Merleau-Ponty, pondo em foco o corpo humano - abstraído em Ser e tempo, mas implícito às dimensões da abertura, principalmente à disposição de animo (Befindlichkeit) - não comparte a idéia de physis integrante da História do ser em Heidegger, mas recai no âmbito do "ser no mundo" , o que equivale a dizer encontrar-se essa mesma obra, como também a de Sartre, L´être et le néant (1943), sob a custódia do pensamento heideggeriano da primeira fase. A fenomenologia da percepção efetua uma retomada interpretativa da redução de Edmund Husserl, que Heidegger neutralizou ao nela deparar com o forte e não abstraível empuxe do idealismo egológico husserliano. Mas, segundo conclui Merleau-Ponty, em seu elucidativo Avant-propos daquela obra, à vista dos então inéditos desse filósofo, a exemplo de A crise das ciências européias (Die Krisis der europäischen Wissenschaften), aquela epoché ou redução fenomenológica é o primeiro acesso do Dasein como ser no mundo: "Longe de ser, como se acreditou, a fórmula de uma Filosofia idealista, a redução fenomenológica é a fórmula de uma Filosofia existencial: o "In-der-Welt-Sein" de Heidegger só pode aparecer sobre o fundo da redução fenomenológica" (Merleau-Ponty, 1945, p. IX). Como se verá neste trabalho, Merleau-Ponty empenhou-se em husserlianizar Heidegger e em heideggerizar Husserl.

Na verdade, A fenomenologia da percepção tem como pressuposto a ontologia hermenêutica de Ser e tempo por ela absorvida, e que se resume a estatuir o princípio do ser-no-mundo enquanto Dasein. Mas ela também se decide por uma volta ao Husserl tardio da Krisis, sustentando, lado a lado com a epoché da consciência e em contraposição ao conhecimento científico, a imediatidade do mundo da vida (Lebenswelt). Essa noção husserliana confirmaria as principais teses daquele livro.

Além disso, Merleau-Ponty se aventura no domínio, tão caro aos românticos alemães no século XIX, da Filosofia da Natureza. E, ainda nesse empreendimento, uma das tonalidades de seus derradeiros cursos, é Husserl que lhe serve de prestimoso guia, antes de adentrar no estudo da Biologia, também um alvo de Heidegger entre 29 e 30, quando proferiu as lições que constituiriam a matéria do livro Die Grundbegriffe der Metaphysik (Os conceitos fundamentais da metafísica), publicado em 1983, mais de vinte anos após a morte de Merleau-Ponty.

Se pretendermos iniciar uma ampla investigação sobre o que une e o que separa esses dois pensadores, e, portanto, sobre as suas afinidades e incompatibilidades filosóficas, teremos que levar em conta, ao discutirmos hoje a relação do pensamento de Merleau-Ponty com a concepção do Heidegger da segunda fase, posterior à Ontologia Fundamental de Sein und Zeit (Ser e tempo), expressa na decidida convergência do filósofo francês, principalmente no seu livro póstumo, Le visible et l´invisible (O visível e o invisível), com o filósofo alemão, temos que levar em conta, dizíamos, além da ontologia heideggeriana, implícita em A fenomenologia da percepção, independentemente do mútuo influxo entre eles, o trânsito de ambos pelas mesmas disciplinas ou domínios de investigação.

Uma Fenomenologia da percepção é uma Fenomenologia do ato de perceber e do percebido, da noesis e do noema; aquele se confunde com o percepiente e o último, com o percebido, seja objeto ou coisa. O percebido é que me defronta; o seu noema descrito acha-se presente, algo que também me confronta apreendido em "carne e osso". Mas é pouco chamar esse algo de objeto. Seria o percepiente apenas sujeito? Em vez de uma relação dual, não teríamos, no caso, uma relação escalar?

Não sou apenas sujeito pensante (res cogitans) e o percebido não é apenas objeto. A escala, que une os termos numa totalidade indefinida ou inacabada, é o mundo. Como ser-no-mundo, enquanto Dasein, ser aí, tenho uma visada pré-objetiva do que me cerca,1 correspondendo isso a um espaço e a um tempo. Mas o ter essa visada comparte com o que sou. Eu a tenho na medida em que existo. E existindo incorporo o que me cerca, dando-lhe sentido, o que significa transcender a situação que ocupo no mundo, situação espacialmente localizada. Mas que espaço é esse senão aquele que meu corpo ocupa? É um espaço convertido àquela medida escalar do mundo, um espaço que eu ocupo. Assim, nesse nível, posso afirmar: "Je suis [...] mon corps, au moins dans toute la mesure où j´ai un acquis et réciproquement mon corps est comme um sujet naturel, comme une esquisse provisoire de mon être total"2 (Merleau-Ponty, 1945, p. 231). Eis o que Merleau-Ponty chama de corps propre, distinto do corpo geométrico, e que é minha ancoragem no mundo (ibid., p.169). Por isso, a percepção, que nunca se concretiza como uma atividade do espírito, isoladamente do corpo, está na dependência dessa âncora que me liga a coisas e não a objetos. É preciso bem distinguir entre coisas e objetos, distinção que Heidegger também fez, mas de outra maneira.

O que eu percebo é uma coisa, a que meu corpo se alia, e não o objeto da ciência física, em movimento no espaço tridimensional, e , como coisa, o percebido é presença corporal. "C´est par mon corps que je comprends autrui comme c´est par mon corps que je perçois des `choses'"3 (idem, p. 216).

Só investido(a) no corpo o espírito ou a mente trabalha. Mas o corpo, na qual se investem, acompanha a extensão do visível; é a sua carnadura ou encarnação que sustenta a mente. É a carne, la chair, noção de longa e larga fortuna de Le visible et l´invisible, obra póstuma inacabada de Merleau-Ponty, de que trataremos mais adiante.

Atente-se, porém, para a circunstância de que a ontologia heideggeriana de Ser e tempo, como fundamento do primeiro e decisivo escrito de Merleau-Ponty, redobrava-se com o recurso a outra fonte: a imediatidade do mundo da vida, exposto por Husserl nas páginas diversificadas da Krisis (pp. 35-36), publicadas em 54, e a que, num movimento de retorno a sendas esquecidas ou inexploradas do fundador da Fenomenologia, o mesmo Merleau-Ponty tinha acesso. Antes mesmo da Krisis, num escrito de 34, Husserl bordejava o mundo da vida na experiência pré-cientifica da Terra enquanto solo imóvel dos movimentos copernicano e galileano dos planetas.

A palavra "solo" tem o sentido de matriz radical, escrevia ele em A Terra não se move. Enquanto tal, a Terra não se move, como também não se move o corpo próprio, a carne, a minha carne. "Minha carne: na experiência primordial", escreve Husserl, "ela não está nem em deslocamento nem em repouso internos, diferentemente dos corpos exteriores [...]. A Terra é, para nós todos, a mesma Terra; sobre ela, nela, acima dela, reinam os mesmos corpos, sobre ela os mesmos sujeitos incarnados, sujeitos de carnes que por todos e num sentido modificado são corpos. Mas para nós todos, a Terra é solo e não corpo no sentido pleno" (Husserl, 1989, p. 19).

Essa experiência pré-cientifica da Terra, transponível para a idéia de mundo ambiente, comporá, juntamente com o corpo, o espaço, o tempo, o movimento, o conjunto da Lebenswelt - da experiência vivida antes da análise conceptual e das formulações abstratas da ciência, cujo primeiro resultado foi a matematização galileana da Natureza. Uma coisa é o uso da matemática como suporte de hipóteses comprováveis metodologicamente; outra é a quantificação dos fenômenos naturais, que rejeita a preliminar intuição do ocorrido, transformando a hipótese em realidade única. "No mundo ambiente da intuição, quando, pela abstração, nós dirigimos o olhar para as formas puras espaço-temporais, nós fazemos a experiência dos `corpos', não dos corpos da idealidade geométrica, mas antes "dos" corpos; daqueles que nós experimentamos realmente com conteúdo que é realmente o seu conteúdo de experiência" (Husserl 1954, p. 22). A matematização opera a contrapelo dessa experiência, idealizando o espaço e o tempo, de que surge uma objetividade unívoca, afastada da intuição e aparentada à matemática. A idéia galileana, comenta Husserl na mesma obra, "é uma hipótese, e mesmo uma hipótese de um tipo altamente estranho. O estranho aqui é que a hipótese permanece, agora e sempre, uma hipótese; sua confirmação (a única que seja pensável) é uma sucessão infinita de confirmações" (idem, p. 41).

Mas a matematização não reduplica a Natureza; trata-se de um segundo nível de experiência relativamente à Lebenswelt. E, para Husserl, ambas subsistem, com noesis e noema, articuladamente, no plano intencional, dotadas de transcendentalidade fenomenológica. E eis de onde parte Merleau-Ponty e onde ele se separa de Husserl. Segundo o primeiro, a epoché, operando a redução, substitui a transcendentalidade fenomenológica por uma transcendência tout court, que desborda da consciência para o mundo na percepção. "O mundo está aí antes de qualquer análise que eu possa fazer dele", escreve Merleau-Ponty no famoso prólogo já referido, "e será artificial fazê-lo derivar de uma série de sínteses que religariam as sensações, em seguida os aspectos perspectivísticos dos objetos" (1945, pp. IV). Diz ainda: "A percepção não é uma ciência do mundo, não é nem mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada, ela é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e que esses mesmos atos pressupõem" (ibid., p. V). E acrescenta: "Não precisamos perguntar se nós percebemos verdadeiramente um mundo, é preciso dizer ao contrário: o mundo é aquilo que nós percebemos" (ibid., p. XI).

O mundo é o que nós percebemos, e com o mundo percebemos o espaço, o movimento, o corpo como corpo, que não é entidade geométrica, mas o corpo próprio (das Leib). Essas teses de A fenomenologia da percepção são sustentadas e autorizadas por Husserl, o autor matricial do pensamento desse livro, que, em sua parte final, discute o conceito de temporalidade em Heidegger, excludente da idéia de processo e equivalente a um sujeito verbal: a ação de temporalizar, envolvendo três êxtases, o do "futuro", o do "passado" e do "presente". A ordem temporal iria do futuro ao passado e do passado ao presente. Não assim para Merleau-Ponty, que se firmando na percepção privilegia o presente. "C´est en communiquant avec le monde que nous communiquons indubitablement avec nous mêmes. Nous tenons le temps tout entier et nous sommes présents à nous mêmes parce que nous sommes présents au monde"4 (ibid., p. 485).

A fenomenologia da percepção termina, portanto, num declarado afastamento de Heidegger pelo lado mesmo da formulação essencial do pensamento desse filósofo relativamente ao tempo. Substituiria esse afastamento uma certa aproximação ostensiva, por meio de referências ao filósofo de Ser e tempo em sua última fase, que indicam a força de atração que sobre Merleau-Ponty ele passara a exercer, e que se encontram no livro póstumo, inacabado, Le visible et l´invisible, cuja primeira denominação seria L´origine de la vérité (A origem da verdade), principalmente nas Notas de trabalho (Notes de travail) apensas ao volume. Por que essa virada?

Essa virada veio da necessidade experimentada pelo filosofo francês, com o apoio e o estímulo do pensador alemão, de um reenfoque ontológico do corpo humano, do espaço e da linguagem, que as mencionadas notas de trabalho nos deixam vislumbrar. De antemão, tal reenfoque já traduzia uma crítica à insuficiência de A fenomenologia da percepção. Qual era esse déficit? A falta de explicitação ontológica. "Eu havia descrito a coisa, o mundo, o corpo, a linguagem", acrescenta a nota, "mas guardei em parte a Filosofia da consciência". Isso teria sido o começo para atingir o que estava em causa: o Ser - "mas não ainda para assegurar nossos passos nesse país"; seria preciso destruir a ontologia objetivista dos cartesianos e depois redescobrir a physis (id., 1964, p. 237). Ao penetrar enfim no conjunto hierático do ser, Merleau-Ponty já está se referindo ao Seyn, escrito assim com "y", na segunda fase do pensamento de Heidegger, a qual também está mediando o confronto do francês com a linguagem. Não se pode ter um Cogito silencioso; o eu penso reflexivo é linguageiro. Pela linguagem se chega ao fundamento e ao abismo, ao Grund e ao Abgrund. A obra heideggeriana de referência já é Unterwegs zu Sprache (A caminho da linguagem) e nela a estonteante passagem sobre a singular queda "para o alto" nesse abismo, escrita pelo mestre alemão e citada por Merleau-Ponty num de seus cursos: "Die Sprache ist: Sprache. Die Sprache spricht. Wenn wir uns in den Abgrund, den dieser Satz nennt, fallen lassen, stürzen wir nicht ins Leere weg. Wir fallen in die Höhe. Deren Hoheit öffnet eine Tiefe"5 (Heidegger, 1959, p.13). A linguagem não só está no meio do caminho do pensamento, mas é também o seu caminho. Como então fazer uma ontologia, senão indiretamente? Por que não posso falar do ser a não ser negativamente, assim como a teologia negativa não pode falar de Deus se não negar os seus atributos.

Ainda há outro aspecto: o perspectivismo da percepção que Husserl distinguiu e examinou. Portanto, ela, percepção, não está completa a cada instante. Esse é o lado inconsciente da percepção? Não, diz Merleau-Ponty, é o lado dos existenciários, daqueles relacionamentos que de forma alguma posso constituir: a afeição (Stimmung), o ser com os outros, o ser para a morte, o encontrar-se existindo. "A percepção me tem como a linguagem. E como é preciso que eu esteja aí para falar, é também preciso que eu esteja aí para perceber" (idem, p. 244). Em toda abertura existe um lado obscuro, fechado, oculto - o não verdadeiro colado ao verdadeiro. A mesma verdade que oculta também é o que desvela. Há uma mesma totalidade finita que me cerca, ou seja, o mundo.

Desse ponto de vista, é preciso retificar o presentismo da percepção de que tratamos linhas atrás. Diz-nos Merleau-Ponty que o "presente é inapreensível de perto, nas pinças da atenção, porque estamos ligados a um englobante" (idem, p. 249). Então, o único modo conseqüente de tratar a consciência é focalizá-la como abertura (Offenheit) (p. 252). Considerando-se isso, a Filosofia só pode ser o estudo do Vorhabe do Ser (p. 257), o que não é conhecimento. A experiência do Ser mostra-nos o que a ciência não aprova. Estudando essa experiência - eis o paradoxo -, a Filosofia atravessa o Rubicon da linguagem para reencontrar o silêncio. Mas não só o silêncio. A Filosofia também reencontra o invisível que a percepção já apreendeu no visível. O invisível não está acima do visível, mas nele incluído, como a significação invisível se inclui na palavra visível e como o ente visível se inclui no ser invisível que o redimensiona.

Não há dúvida de que as posições todas de Merleau-Ponty nestas notas são tateantes, e que, se adere ao Ser heideggeriano, ele o faz de uma maneira muito singular, como veremos depois de refletirmos sobre tal hesitante adesão.

O principal entrave a essa adesão é haver Merleau-Ponty mantido o primado da percepção - contra o pensamento mesmo de Heidegger, segundo o qual a precedência ontológica cabe ao Ser. Segundo observa Michel Haar, não há, de acordo com Heidegger, percepção bruta, factual. Toda percepção "pressupõe que seja dado e compreendido um mundo, com seus reenvios significantes e um modo de doação ou um sentido do ser dos entes que podem ser reencontrados [...]. Por outros termos, a percepção se define pelo sentido do que percebemos e não o inverso" (Haar, 1998, pp.128-129).

Segundo o mesmo comentarista, Merleau-Ponty terá buscado em Heidegger um meio de escapar do primado da consciência perceptiva, assim fugindo à metafísica da subjetividade esboçada em Husserl. Ele teria, de fato, escapado desse antropocentrismo, sem, de maneira nenhuma, atentar para a crítica heideggeriana da percepção. Mesmo assim adotaria a tese de Heidegger admitindo a posse da linguagem sobre nós e o efetivo nexo da linguagem com o silêncio.

O que nos traria o primado ontológico da percepção? Um equivalente existencial do esse est percipi de Berkeley? Ser é ser percebido. Mas pode-se dizer o mesmo do percepiente. Como sujeito desse ser, o percepiente é quem sente; ser percebido e ser percepiente se entrosam num relacionamento duplo, num duplex sensível recortado sobre a finita totalidade do mundo. Duplex igualmente é o tocar e o ser tocado. Ambos ultrapassam meu corpo, remetendo-me a um único sensível carnal que de outro ou de outros também é. Merleau-Ponty quer contrabalançar o fugidio domínio do percepiente e do percebido, por uma dobra sensível, estendida para além dos corpos: a carne, como verdadeira tessitura do mundo.

Para esconjurar o sortilégio de uma alma do mundo, à maneira de Plotino ou de Giordano Bruno, Merleau-Ponty conceberia o mundo como um todo orgânico, mas carnal, como um entrosamento vivo de corpos interligados pelo extensivo sensível a eles comum. A carne recobre o corpo e é mais do que corpo: o sensível estendido ao mundo e que discutido se encontra antes das Notas de trabalho, nas últimas páginas de Le visible et l´invisible, as quais promovem o julgamento da Filosofia reflexiva, do intuicionismo bergsoniano e da dialética hegelo-marxista já sob a pressão, embora difusa, da idéia heideggeriana da História do Ser.

A Filosofia reflexiva jamais poderá ceder à instância do ser bruto em torno do qual gira a experiência sem convertê-lo em idéia. A dialética tentará circunscrevê-lo na idéia contrária, esbarrando na impossibilidade de síntese. Finalmente, o bergsonismo pretende surpreendê-lo em estado puro, abstendo-se de símbolos, fora da linguagem, num ato de identificação de filósofo com a coisa.

Tais julgamentos não podem separar-se da primeira correção que em O visível e o invisível se faz de A fenomenologia da percepção, de 1945: o dado a considerar não é a percepção propriamente dita, a percepção tout court, mas a fé perceptiva, na qual nos encontramos, como medida preliminar que nos entrosa ao mundo e ao ser, e que de qualquer de nós faz um Dasein, levando-nos de volta às coisas sob a mediação da linguagem. A mediação da linguagem. Eis como entender o lema guerreiro da Fenomenologia - de volta às próprias coisas.

É a propósito da linguagem que veríamos melhor como se pode e como não se pode voltar às coisas mesmas. Se nós imaginamos reencontrar o mundo natural ou o tempo por coincidência [...] a linguagem é uma potência de erro, porque corta o tecido contínuo que nos une vitalmente às coisas [...]. A linguagem é uma via, é a nossa via e a delas. Não que a linguagem se aposse dela e a conserve: que teria ela a dizer se não houvessem senão coisas ditas? [...] Melhor do que qualquer outra pessoa, o filósofo sabe que a vivência é vivência falada, que, nascida nessa profundeza, a linguagem não é uma máscara aposta ao Ser, mas se nós sabemos recuperá-la com todas as suas raízes e com toda a sua fronde, o mais válido testemunho do ser [...]. (Merleau-Ponty, 1964, p. 167)

Nesse ponto, temos que levar em conta a distinção estatuída em ensaios anteriores de Merleau-Ponty e no livro concluído e abandonado pelo autor, La prose du monde, entre linguagem constituída e linguagem constituinte ou operante, ou seja, entre a linguagem sedimentada da tradição e a linguagem inovadora que se une ao pensamento descobridor, como um logos em demanda da verdade. A linguagem operante seria arma, sedução e ação ofensiva; fazendo "aflorar todas as relações profundas das vivências entre as quais se formou" (Merleau-Ponty, 1969, p. 168), ela é o próprio tema da Filosofia. A Filosofia é "linguagem, repousa sobre a linguagem; mas isso não a desqualifica nem para falar da linguagem nem para falar da pré-linguagem e do mundo silente que as redobra: ao contrário, ela é linguagem operante, essa linguagem que só se pode conhecer por dentro, pela prática, aberta às coisas, chamada pelas vozes do silêncio, e continua um ensaio de articulação que é o Ser de todo ser" (ibid., p. 168).

O tocar e o ser tocado, o vidente e o visível, que se estendem para além do corpo no tecido carnal do mundo de que antes falamos, são colhidos na móvel trama dessa linguagem operante. Nenhuma tradição da Filosofia ocidental sustenta, de fato, a extensividade cósmica e ontológica emprestada por Merleau-Ponty a esse termo"carne", configurando, na tradição apostólica cristã, o corpo enquanto passível de juízo religioso e escatológico. A carne não é nem a matéria nem a forma da antiga Filosofia. Como nos diz Laurent Jenny, a carne, que desborda do corpo, também é latência: "Ela é esse fundo inesgotável , esse recurso de uma obscuridade cega, um `invisível' tenebroso do qual emergem sem cessar novas diferenciações formais. Desse ponto de vista [continua a mesma autora], a teoria da carne, em Merleau-Ponty, tem qualquer coisa de uma embriologia do ser" (Jenny 1997, pp.136-7). Mas não é a carne que se opõe ao espírito, assim como a alma se opõe ao corpo, o interior ao exterior, o pensamento à matéria?

Esses conceitos não representam realidades nem opostas nem complementares; acham-se entrosados sem que disso resulte duplicação. Do entrosamento, como o que se dá entre os nervos óticos (um chiasmo) e do qual decorre uma só imagem, deriva o recorte unindo as duas bandas de uma só coisa: o visível ao invisível, o anímico ao corporal, o visual ao palpável, o interno ao externo, o individual ao coletivo, o subjetivo ao intersubjetivo. Na obra interrompida, tanto no seu texto central como nas notas de trabalho, é onde melhor podem os leitores enxergar os traços da luta a cada momento travada pelo filósofo com a linguagem - do filósofo que também é escritor - nos limites da expressão possível, em demanda desses chiasmos que se situam e nos situam aquém da realidade objetiva, onde não mais vige a proposição. Nesse domínio, ologos se instilaria na Natureza. Husserl ou Merleau-Ponty alcança os limites da Fenomenologia. Chamou-se Logos et Nature. O Corpo humano, o último curso das quintas feiras no Colégio de France, proferido pelo nosso autor em 1960. Aí se diz que não é o olho que vê mas o corpo , porque entrosado está pela sua carne à carne do mundo. Um renovo da Filosofia romântica da Natureza? Nem tanto assim. A Filosofia romântica preparou a noção vitoriosa do Espírito no idealismo germânico. O logos despontará na Natureza, na carnalidade do mundo, à custa das instâncias científicas do orgânico, pacientemente estudadas por Merleau-Ponty, como a embriologia de Driesch e a etologia de Uexkull.

Desde logo separa-se ele da Filosofia da Natureza como superciência, ao mesmo tempo conhecimento supra-sensível. No entanto, o intuito de Merleau-Ponty é extrair do conceito de Natureza a sua ontologia. Mas essa ontologia não pode cindir-se das investigações sobre a gênese demandadas à embriologia (Driesch) e à conduta dos animais em seu meio-ambiente, o Umwelt (mundo ambiente) de Uexkull.

Com a gênese, um destino possível se delineia, como se houvesse um espaço de ordem do qual resultará um tipo. Mas isso implica o aparecimento de órgãos definidos com a sua locação específica no corpo. Quando há regeneração, a atividade celular segue um rumo determinado com regulações prévias que o organismo mesmo produz. E o desenvolvimento ou o ciclo evolutivo? Como funcionam as regulações? Uma forma predomina à maneira de enteléchia, mas moldada por um conjunto de desaparitions d´équilibres (Merleau-Ponty, 1995, p.300). Após Driesch, o vitalismo continua, sem que cesse a luta contra o mecanicismo. Mas nessa matéria, não devemos nem platonizar nem aristotelizar (ibid., p. 206). E é preciso evitar dois erros: colocar por detrás dos fenômenos um princípio positivo (idéia, essência, enteléchia) e não ver de modo algum princípios reguladores (ibid., p. 207).

O outro capítulo de igual importância é o que diz respeito ao corpo fenomenal, isto é, o corpo que sente e age conforme seu Umwelt, noção tomada a Uexkull. Eu e os animais superiores também somos testemunhas do Umwelt, devido ao corpo fenomenal que é o mensurador do mundo. Estou aberto ao mundo e em circuito com ele; eu me vejo e me toco. "A mão que eu toco, sinto que ela poderia tocar aquela que a toca. E isso não é verdadeiro ultrapassados os limites de minha pele. Então o bloco de meu corpo tem um `interior' que é sua aplicação a si mesmo" (ibid., pp. 279-80). Eis o lado invisível do visível, do corpo, com seu peculiar simbolismo, de que a carne transborda. Mas a essa altura pergunta Merleau-Ponty se as metáforas valem para o estudo do corpo. A resposta é afirmativa.

O corpo em seu circuito, aberto às coisas e ao mundo, é o que o filósofo chama de carne, "montada sobre uma armadura invisível (articulação corpo tocado e corpo que toca) e as coisas sentidas tanto quanto o corpo tocado instalados em torno de um vazio central ou habitadas por uma estrutura que é sua realidade carnal" (ibid., p. 286). Tudo aqui é perceptível em diferentes níveis, incluindo a carne, esse tecido conjuntivo de tudo. Seria então a Natureza, de que Merleau-Ponty se ocupa, o liame do meu corpo com o corpo do mundo . Talvez se pudesse descrevê-la à semelhança de um imenso organismo animado, tal como Leonardo Da Vinci a descreveu: "Nós podemos (...) dizer que um espírito de crescimento anima a terra; sua carne é o solo; seus ossos são as estratificações sucessivas das rochas que formam as montanhas; suas cartilagens são o tufo; seu sangue, as águas correntes" (Da Vinci, 1942, v. 1, p. 91).

Daqui por diante experimentaremos inverter o ponto de vista do qual partimos, focalizando uma aproximação contrária, de Heidegger a Merleau-Ponty e não de Merleau-Ponty a Heidegger, pois que terá sido este e não aquele, segundo Pavlos Kontos, o autor de uma alta Fenomenologia da percepção. Em trabalho publicado em 1996, Pavlos Kontos nos diz que essa alta Fenomenologia se resume em determinar o componente ontológico do perceptual, buscando, portanto, o aspecto que aproximou o pensador francês do pensador alemão.

A percepção é, sem dúvida, corporal; além disso, é diversa, porquanto cumpre um ato de coordenação. O que a distingue é a apreensão de um ente; e esta só se dá quando se abre o ser desse ente: "A perceptualidade é condicionada pelo estatuto ontológico do percebido enquanto percebido" (Kontos, 1996, p. 41). Em si o percebido é ôntico. A Fenomenologia heideggeriana da percepção determinaria as condições ontológicas da mesma percepção. Uma dessas condições é temporal. A percepção só existe no presente. Desse modo, a Fenomenologia, em tal caso, descreveria as incidências da temporalidade, como no agir circunspectivo, que Pavlos Kontos considera um modo de percepção, enquanto o ente manual ou disponível é um modo do percebido (ibid., p. 48 e ss.).

Outra aproximação, no sentido contrário ao inicial, e que ficou pelo menos documentada em 65, diz respeito à focalização do corpo por Heidegger na sua fraternal discussão com Medard Boss tomada sob uma angulação ontológica já manifesta em La phénoménologie de la perception. Ao apontar para o limite da janela com o dedo, eu não termino na ponta de meu dedo. Nele está o limite do corpo? "Todo corpo é meu corpo." A frase em si é sem sentido. Mais exatamente, dever-se-ia dizer: o corpo é em cada casa meu corpo. Isto faz parte do fenômeno do corpo. O "meu" é relacionado a mim mesmo. Com "meu" quero dizer "eu". O corpo está no "eu" ou o "eu" no corpo? Em todo caso, o corpo não é alguma coisa, algum corpo material, mas sim todo corpo, isto é, o corpo como corpo é o meu corpo em cada caso. O corporar do corpo (leiben des Leibes) "determina-se a partir do modo de meu ser" (Heidegger, 2001, p. 114).

Depois dessas aproximações contrárias àquela pela qual iniciamos, podemos agora figurar o encontro dos dois filósofos na trilha dos mesmos biólogos, destacados por Merleau-Ponty num de seus cursos no Collège de France e por Heidegger no item b do Parágrafo 61 de Die Grundbegriffe der Metaphysik: Hans Driesch e Jakob Johann von Uexkull.

Heidegger a eles atribui as duas grandes passadas da biologia moderna. "A primeira concerne o reconhecimento do caráter holístico do organismo [...]. A totalidade significa que o organismo não é um agregado composto de elementos ou partes, mas que o crescimento e a construção do organismo é governada pela sua totalidade em cada estágio" (Heidegger, 1983, p. 380). A segunda passada é a "captação da significação essencial da pesquisa concernente à maneira pela qual o animal está submetido ao seu ambiente" (ibid.). A primeira, continua Heidegger, se deve "as investigações pioneiras de Hans Driesch sobre os embriões de ouriços do mar, que representa um objeto exemplar para a biologia experimental" (ibid.). A segunda foi empreendida pelo contemporâneo daquele, Uexkull, que ultimou o liame entre Biologia e Ecologia, pesquisando a relação entre animal e seu mundo ambiente (ibid., p. 382)".

O que interessou aos dois filósofos foi a formação, a gênese, a aparição e o desenvolvimento dos organismos e, por conseguinte, de certo modo, a physis, enquanto originária de phyein, a que ambos, Merleau-Ponty e Heidegger de qualquer maneira recuaram. Antes da ulterior de decadência do conceito para natura, a physis assinalaria o início da História do Ser.

Mas, com essa História, começam o mundo e o Dasein, e é no Dasein que o mundo se abre. Por isso é aquele, o Dasein, weltbildend (articulador de mundo), em comparação com a falta de mundo (weltlos) dos minerais e a pobreza de mundo (weltarm) dos animais (ibid., p. 263). Mas essa pobreza não pode ser dimensionada e é duvidosa.

A Natureza propriamente dita, que recebemos da tradição filosófica latina (natura), mormente do atomismo de Lucrécio, e também da Física e da Astronomia dos séculos XVII e XVIII, parece constituir a retaguarda do mundo, correspondente à terra na sua qualidade de corpo físico, ao céu, na escala do espaço infinito, aos animais incluindo nossa espécie e as plantas em itinerância evolutiva. É a partir dessa retaguarda enigmática, fechada à indagação sobre o sentido, que os dois filósofos se separam.

Para Merleau-Ponty, a Natureza enquanto physis equipara-se à carne. Para Heidegger, a Natureza nessa clave depende sempre do ser manifestante e, portanto, da presença que surge ou eclode - a physis entre os antigos gregos -, como dependerá da actualitas dos Escolásticos no Medievo, da res extensa dependente do Eu penso no início da Filosofia moderna com Descartes, esses dois aspectos entrosados no Deus sive natura de Spinoza, ora natura naturans ora natura naturata. Estamos, enfim, diante da Natureza baconiana, em que ciência e poder humano coincidem, já sob a égide do ente manipulável e manipulado pelo homem, que corresponde à época das concepções do mundo, da Estética e da dominação tecnológica franqueada por outra manifestação do ser: o Gestell, desvelamento do real como reserva (Bestand), "na modalidade do cometimento". Se a técnica não é, para Heidegger, uma questão apenas técnica, também a Natureza não é natural, mas um modo entitativo do ser. A Natureza não está aí circundando o homem com uma abundância de objetos, diz Heidegger no já citado Os conceitos fundamentais da Metafísica, é isso o que devemos compreender. Ao contrário, "o Dasein humano é intrinsecamente um peculiar ser transposto [versetztsein] no envolvente círculo contextual dos seres vivos" (Heidegger 1983, p. 403; os itálicos no original).

Não há mundo senão porque há Dasein. E não há Natureza senão depois do mundo e do Dasein.



Referências

Haar, Michel 1998: "Proximité et distance vis-à-vis de Heidegger". In Merleau-Ponty 1998, pp.128-129.
Heidegger, Martin 1927: Sein und Zeit. Tübingen, Niemeyer. Tradução brasileira: Ser e tempo. Petrópolis, Vozes, 2004.
_____ 1953: Unterwegs zur Sprache. Pfullingen, Neske. Tradução brasileira: A caminho da linguagem. Petrópolis, Vozes, 2003.
_____ 1983: Die Grundbegriffe der Metaphysik. Gesamtausgabe 29/30. Frankfurt/M: Klostermann. Tradução brasileira: Os conceitos fundamentais da metafísica. Rio de Janeiro, Forense, 2003.
_____ 2001: Seminários de Zollikon. Petrópolis, Vozes.
Husserl, Edmund 1954: Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentalePhänomenologie (A crise das ciências européias e a Fenomenologia transcendental). Den Haag, Nijhoff.
_____ 1989: A Terra não se move. Paris, Les Éditions de Minuit.
Jenny, Laurent 1997: Merleau-Ponty et le Littéraire. Paris, Presses de L´École Normale Supérieure.
Kontos, Pavlos 1996: D´une phénomenologie de la perception chez Heidegger. Dordrecht, Kluwer.
Leonardo Da Vinci 1942: Les Carnets de Leonardo Da Vinci. Paris, Gallimard, v. 1. p.91,
Merleau-Ponty, Maurice 1945: La phénoménologie de la perception. Paris, Gallimard.
_____ 1964: Le visible et l´invisible (O visível e o invisível). Paris, Gallimard.
_____ 1969: La prose du monde. Paris, Gallimard.
_____ 1995: Notes. Cours du Collège de France. Paris, Seuil.
_____ 1998: Notes. Cours sur l´Origine de la géométrie suivi de Recherches sur la phénoménologie. Paris, PUF (Col. Epiméthé).
Sartre, Jean-Paul 1943: L´être et le néant. Paris, Gallimard.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

SUA PRESENÇA AQUI É ORDEM


SUA PRESENÇA AQUI É ORDEM, ela diz... enquanto a lembrança de ontem à noite se dissolve: ela fez um biquinho que eu adoro, como se estivesse escondendo uma pastilha na boca ---- virei-me para beija-la, no escuro ---- ela permanecia imóvel ---- A PAZ É COMPLETA ---- o amor que nos bafeja é completo ----  (CORTA ---- agora eu estou passando o aspirador de pó na sala de estar, a vitalidade perversa da poeira que as caixas de papelão deixaram pelos cantos do apartamento: quando eu estava ainda no colégio, lembro que fiquei encantado quando li, em algum livro de química, que os cheiros que sentimos são pedacinhos mínimos da COISA EM SI, que excitam um receptor no nariz, uma fumaça mais sutil; tudo tem sua nuvem, a de uma flor é maior que a de uma pedra, a de um cadáver é maior do que a de uma pessoa viva. Com a palavra ''JOANA'' começa um som agradável de se formar para os músculos da minha garganta ----  o nome de Joana enchendo meu ouvido, a imagem dela de manhã, branca, nua e desfeita entre lençóis enche a paisagem da minha alma, com suas mãos de dedos compridos e juntas  azuladas, que se entrelaçam e afastam: Joana ri, um riso tímido, recém-desperto, que tenta se conter, tão logo sai pela sua boca, como um ioiô de fio emaranhado ---- O TELEFONE AGORA TOCA, É ELA: ---- Você quer vir almoçar comigo e a minha mãe no shopping(?) -----, vejo a mãe dela através da ligação, olhando para as próprias mãos, respirando lentamente: ---- ESTOU OUVINDO(.) ALMOÇO AQUI MESMO, HOJE(.) TE AMO(.) 
 ---- TEU COLO ARFA SOB O TRAJE FLUIDO E VÁRIO / TEU COLO VITORIOSO É COMO UM BELO ARMÁRIO / CUJOS CLAROS GOMOS CONVEXOS / COMO OS BROQUÉIS CAPTURAM RÚTILOS REFLEXOS. / PROVOCANTES BROQUÉIS DE AGUDAS PONTAS ROSAS! / ARMÁRIOS CHEIOS DE IGUARIAS PRECIOSAS / VINHOS, PERFUMES E LICORES / QUE O CORAÇÃO E A MENTE INUNDAM DE TORPORES

 O poeta e A leitorA vão dos seios da mulher à nau, ao armário e seus estofos, daí aos broquéis, vinhos, perfumes, licores... também em o Perfume o cheiro do almíscar é sutil e estranho encanto que transfigura / em nosso agora a imagem do passado: por isso remete ao corpo, aos outros cheiros, cabeleiras, alcovas, roupas íntimas de mulher, molhadas; Baudelaire foi também, por isso, o poeta das sensações vivas, cheiros que são cores, que são sons, que são lembranças e emoções''. E Sabrina voltou com outra voz.. Eu estava co o jornal nas mãos. Outra voz,  mas atacando a mesma canção, agora mexendo com os quadris, embora bem agradável ao olhar, como se fosse uma aeromoça. Outro foco de luz sobre ela, agora: alaranjado, praias do Norte, o tom vermelho-alaranjado de uma atleta, de uma jogadora de vôlei de praia.


O vento erguia um cerco à nossa volta, e não havia necessidade de falar nada: PALAVRAS SÃO SOLIDÃO. "Apenas fique com ela, K(...'', eu me repetia, ''e talvez você escape ileso de tudo isto; deixarei um par de palavras para você no forno, na cozinha de sua casa: quando voltarem, você as cobrirá com os cotovelos sujos de tinta de caneta e as esquecerá logo depois de ler(...''. Subimos depressa a íngreme duna diante de nós, e sem perder mais  tempo tiramos os chinelos; a respiração dela, arquejante devido ao esforço de correr morro acima, me pareceu deliciosa: era o gosto da juventude renovada pela PALAVRA e o TANTRA.


 os olhos de Joana se encaminhando para a água eram daquele mesmo negror imaculado: meu coração se animava para sempre dentro daquele pequeno céu negro de suas pupilas: primeiro nadamos juntos; depois, fui sozinho para a água, enquanto ela ficou deitada na areia se bronzeando; quando voltei, ela parecia mais loira e varrida pelo vento, como se uma criatura da areia a tivesse escondido antes: alta, longas pernas, muito loira e muito bronzeada; a tonalidade bronzeada que se estendia facilmente (em poucos minutos) desde a raíz dos cabelos até as unhas dos pés pintadas de vermelho era o resultado de algo feito para afastar o que ela chamava de ''palidez doentia do artista insone''; seus braços e corpo na frente estavam quentes e as costas curvas, ainda frescas: UM AUTÊNTICO BANHO DE SOL FEMININO (o rosto rosado: ---- Ei, que bom que você voltou(.)

--- Se alguma coisa for realmente necessária para fazer-te ficar novamente bem consigo mesma, MEU AMOR, advirto desde já que ontem à noite redescobri Giovani Papini(... não me importa que ele seja um chauvinista, um pequeno hipócrita ou um pedante míope(: COMO FRACASSO, É MARAVILHOSO(!) não só ele, mas os livros que leu, e como os leu... aos dezoito anos(! não só Homero, Dante, Goethe, não só Aristóteles, Platão, Epiteto, não só Rabelais, Cervantes, Swift, não só Walt Whitman, Edgar Allan Poe, Baudelaire, Villon, Carducci, Manzoni, Lope de Vega, não só Nietzsche, Schopenhauer, Kant, Hegel, Darwin, Spencer, Huxley ---- não só esses, mas toda a arraia-miúda que fica entre eles(... isso na página 18 - ALLORS - 232, Papini sucumbe e confessa: ''NADA SEI'', admite: ''CONHEÇO OS TÍTULOS, COMPILEI BIOGRAFIAS, ESCREVI ENSAIOS CRÍTICOS, CALUNIEI E DIFAMEI... POSSO FALAR DURANTE CINCO MINUTOS OU CINCO DIAS, MAS DEPOIS(... SANTO DEUS, EM QUE ME TRANSFORMEI(?) 

e (CORTA ---- Deitado e já de banho tomado, contente de tocar com a ponta do dedo a ponta do seio de Joana, tive aquele conhecimento que cai como chuva, pois compreendi então que o amor não era um dom, mas um voto. Somente os bravos podem viver com ele por muito tempo. Lembrei então outras mulheres com quem estive, deitado ao lado delas, com um amor um pouco diferente; tive uma vaga indicação disto ...e flutuamos com a maré, profundamente um no outro,  como um longo fluxo de recordações, até tarde da noite.  


, a cauda de um pavão real,os céus tecidos de estrelas, as estrelas refletidas na água obscura, esferas luminosas, lingotes de ouro ou areia dourada espalhadas na terra negra, uma regata na noite, com lanternas na superfície do mar, um olho solitário na superfície da terra ou do mar. 


Antes da criação deste mundo já existia a GRANDE MENTE UNIVERSAL, que descansava nas ÁGUAS. 


Este mundo eram as águas que fluíam em si mesmas,'NA ONDA INFINITA''. Até que: ''As águas desejaram. Solitárias, arderam como fogo... e arderam o próprio ardor'' Na onda se formou uma concha de ouro. Isto, o UM, nasceu pela potência do primeiro ardor'', escreve Calasso em Ka. Este desejo ou ardor (tapas), que brotas das águas, se manifesta como uma faísca, como um resplendor que acende a crista de uma onda trêmula; - só uma mau resumida história de como essa luz na água fez com que a mente se materializasse para perseguir esse ardor que parecia flutuar fora dela 


K.M.

quinta-feira, 11 de maio de 2017

FIXER DES VERTIGES.


UMA PROSA PODE APODRECER COMO UM FILÉ COM FRITAS. HÁ MUITOS ANOS QUE ASSISTO AOS INDÍCIOS DE PODRIDÃO NA MINHA PROSA. COMO EU , TEM SUAS ANGINAS , SUAS ICTERÍCIAS, SUAS APENDICITES, SEUS CÂNCERES, SEUS INFARTOS, MAS SEMPRE ME EXCEDE NO CAMINHO DA DISSOLUÇÃO FINAL  . DEPOIS DE TUDO , APODRECER SIGNIFICA TERMINAR COMO A IMPUREZA DOS COMPOSTOS E DEVOLVER OS SEUS DIREITOS AO SÓDIO , AO MAGNÉSIO , AO CARBONO , QUIMICAMENTE PUROS. MINHA PROSA APODRECE SINTATICAMENTE, E AVANÇA ----- COM MUITO TRABALHO ---- PARA A SIMPLICIDADE. CREIO QUE É POR ISSO QUE JÁ NÃO SEI ESCREVER A A PALAVRA ''COERENTE ''. VENHO ESCREVENDO ''KOERENTE'' COM K . UM ENCABRITAMENTO VERBAL ME DEIXA A PÉ POUCOS PASSOS MAIS ADIANTE. FIXER DES VERTIGES. QUE BONITO ! MAS SINTO QUE DEVERIA FIXAR ELEMENTOS.  O POEMA EXISTE PARA ISSO, E CERTAS SITUAÇÕES DE ROMANCES OU CONTOS. O RESTO É TAREFA DE RECHEIO E NÃO ESTÁ ME SAINDO BEM NO MOMENTO.

----- SIM, MAS OS ELEMENTOS SERÃO O ESSENCIAL ? FIXAR CARBONO VALE MENOS QUE FIXAR A HISTÓRIA DOS GUERMANTES .

----- CREIO OBSCURAMENTE QUE OS ELEMENTOS QUE APONTO SÃO UM TERMO DE COMPOSIÇÃO. O PONTO DE VISTA DA QUÍMICA ESCOLAR SE INVERTE. QUANDO A COMPOSIÇÃO CHEGA AO SEU EXTREMO, O TERRITÓRIO ELEMENTAR ABRE-SE. OLHÁ-LOS E, SE POSSÍVEL, ''VÊ-LOS'' ...

K.M.

A liquidação do ópio .


Tenho a intenção declarada de encerrar o assunto de uma vez por todas, para que não venham mais nos encher a paciência com os assim chamados perigos da droga.
Meu ponto de vista é nitidamente anti-social.
Só há uma razão para atacar o ópio. Aquela do perigo que seu uso acarreta ao conjunto da sociedade.
Acontece que esse perigo é falso.
Nascemos podres de corpo e alma, somos congenitamente inadaptados; suprimam o ópio: não suprimirão a necessidade do crime, os cânceres do corpo e da alma, a inclinação para o desespero, o cretinismo inato, a sífilis hereditária, a fragilidade dos instintos; não impedirão que haja almas destinadas a seja qual for o veneno, veneno da morfina, veneno da leitura, veneno do isolamento, veneno do onanismo, veneno dos coitos repetidos, veneno da arraigada fraqueza da alma, veneno do álcool, veneno do tabaco, veneno da anti-sociabilidade. Há almas incuráveis e perdidas para o restante da sociedade. Suprimam-lhes um dos meios para chegar à loucura: inventarão dez mil outros. Criarão meios mais sutis, mais selvagens; meios absolutamente desesperados. A própria natureza é anti-social na sua essência – só por uma usurpação de poderes que o corpo da sociedade consegue reagir contra a tendência natural da humanidade.
Deixemos que os perdidos se percam; temos mais o que fazer que tentar uma recuperação impossível e ademais inútil, odiosa e prejudicial.
Enquanto não conseguirmos suprimir qualquer uma das causas do desespero humano, não teremos o direito de tentar a supressão dos meios pelos quais o homem tenta se livrar do desespero.
Pois seria preciso, inicialmente, suprimir esse impulso natural e oculto, essa tendência ilusória do homem que o leva a buscar um meio, que lhe dá a idéia de buscar um meio para fugir às suas dores.
[...]
Aqueles que ousam encarar os fatos de frente sabem – não é verdade? – os resultados na proibição no álcool nos Estados Unidos.
Uma superprodução da loucura: cerveja com éter, álcool carregado com cocaína vendido clandestinamente, o pileque multiplicado , uma espécie de porre coletivo. Em suma, a lei do fruto proibido.
A mesma coisa com o ópio.
A proibição, que multiplica a curiosidade, só serviu aos rufiões da medicina, do jornalismo, da literatura. Há pessoas que construíram fecais e industriosas reputações sobre sua pretensa indignação contra a inofensiva e ínfima seita dos amaldiçoados da droga (inofensiva porque ínfima e porque sempre uma exceção), essa minoria de amaldiçoados em espírito, alma e doença.
Ah! Como o cordão umbilical da moralidade está bem atado neles! Desde a saída do ventre materno – não é? – jamais pecaram. São apóstolos, descendentes de sacerdotes: só falta saber como se abastecem da sua indignação, quanto levam nessa, o que ganham com isso.

Antonin Artaud
      Segurança Pública
          A Liquidação do Ópio

terça-feira, 9 de maio de 2017

Identité du deviné.


2 feuilles
le tire
au verso
 de l´une ---- 
qui devient recto
au recto de l´autre
qui devient verso.
Toutes deux
montre ainsi 
seul ----
identité du
deviné.

S. Mallarmé.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

EL ÚLTIMO DIOS


 http://www.heideggeriana.com.ar/textos/ultimo_dios.htm
(Contribuciones a la filosofía. Sobre el acontecimiento-apropiador)
Martín Heidegger.
Traducción de Fabián Mié. Nombres. Revista de Filosofía. Cordoba. Año VI. N° 8-9, nov. 96. Tipeó e indexó Di biase, Nicolas.


: 253. LO ÚLTIMO
es Aquello que no sólo necesita la más larga serie de pre-cursores, sino que incluso es esta serie; no el terminar, sino el más profundo inicio, que extendiéndose con total amplitud se recoge en sí muy difícilmente.
Lo último se retrae, por tanto, de todo cálculo y debe, así, ser capaz de soportar el peso de la más estruendosa y frecuente malinterpretación. ¿Cómo podria ser de otra manera Aquello que se adelanta?
¿Si comprendemos ya tan poco la “muerte” en sus aspectos más exteriores, cómo queremos entonces estar ya maduros para la infrecuente señal del último dios?

: 254. LA DENEGACIÓN
Nos desplazamos al espacio-tiempo de la decisión sobre la huida y la llegada de los dioses. Pero ¿cómo? ¿Llegará a ser lo uno o lo otro un suceso futuro, debe determinar lo uno o lo otro la espera constructiva? ¿O es la decisión la apertura de un espacio-tiempo completamente diferente para una verdad, por cierto la primera verdad fundada del ser , el acontecer-apropiador?
Pero ¿y si aquel ámbito de decisión en conjunto, huida o advenimiento de los dioses, fuera justamente el final mismo? ¿Y si, más allá de eso, el ser debiera comprenderse por primera vez en su verdad como el acontecer-apropiador, que como tal hace acontecer Aquello que denominamos denegación?
No se trata de una huida ni de un advenimiento, pero tampoco de algo que fuera tanto una huida como conjuntamente un advenimiento, sino de algo originario, el pleno concederse del ser en la denegación. Aquí se funda el origen del estilo futuro, e. d. del comportamiento en la verdad del ser.
La denegación es la nobleza más alta del donar y el rasgo fundamental del ocultarse, cuya manifestabilidad constituye la esencia originaria de la verdad del ser. Sólo así el ser deviene el extrañamiento mismo, el paso tranquilo, fugaz, del último dios.
Pero el ser-ahí ha tenido lugar en el ser, como guardián de esa quietud. Huida y llegada de los dioses se desplazan ahora conjuntamente a lo sido y se sustraen de lo pasado.
Pero lo venidero, la verdad del ser como denegación, tiene en sí la garantía de la grandeza, no de la vacía y enorme eternidad, sino del trayecto más breve.
Pero a esta verdad del ser, la denegación, pertenece el velamiento de lo inexistente como tal, el desligamiento y la disipación del ser. Recién ahora debe permanecer el abandono del ser3. El desligamiento, no obstante, no es vacua arbitrariedad y desorden; por el contrario: todo está ahora guarecido en la planeada dirigibilidad y justeza de la salida segura y del dominio "sin resto". La maquinación toma a su cuidado lo inexistente bajo la apariencia de lo ente, y la devastación ineludible y con ello forzada del hombre se compensa con la "vivencia".
Todo esto, justamente en tanto inesencial, debe pues llegar a ser más necesario que nunca, porque lo más Extraño también precisa de lo más común, mientras que la escisión del ser no debe ser soterrada mediante la apariencia artificial del equilibrio, de la "felicidad" y de la falsa perfección; pues el último dios aborrece en primer lugar todo esto.
¿Pero no es el último dios una degradación del Dios, incluso la blasfemia sin más? ¿Pero cómo, si es necesario que el último dios sea llamado así, por qué hace descender entre los dioses la decisión sobre ellos, elevando de este modo a lo más alto la esencia singular de lo divino?
El último dios es algo sobre lo cual resulta imposible cualquier saber, si aquí pensamos calculadoramente y tomamos este "último" sólo como un término y un final, en lugar de tomarlo como la más extrema y fulmínea decisión sobre lo más alto. ¿Pero cómo se puede querer pensar lo divino calculando, en lugar de meditar sobre el peligro de algo extraño e incalculable?

: 255. LA VUELTA EN EL ACONTECIMIENTO-APROPIADOR*
El acontecimiento-apropiador tiene su acontecer más íntimo y su más amplia expansión en la vuelta. La vuelta, que se esencia en el acontecimiento-apropiador, es el fundamento oculto de todas las otras
vueltas, círculos y cercos, que se toman voluntariamente como “último”, subordinados, oscuros en su procedencia, permaneciendo incuestionados (cf. p. e. la vuelta en la estructura de las preguntas conductoras; el círculo del comprender).
¿Qué es esta vuelta originaria que tiene lugar en el acontecimiento-apropiador? Solamente la acometida del ser como acontecer apropiador del ahí lleva al ser-ahí a él mismo, y de esta manera a la consumación (a la salvación) de la verdad fundada en el ente sólidamente, que halla su sitio en el oculto albergar iluminado del ahí.
Y en la vuelta: sólo la fundación del ser-ahí, la preparación de la disponibilidad para el rapto que desplaza a la verdad del ser, aporta lo que sirve y lo que es perteneciente a la señal del acometedor acontecimiento-apropiador.
Si el ser-ahí, el centro abierto de la mismidad que funda la verdad, se yecta a sí y se hace un si solamente a través del acontecimiento-apropiador, entonces el ser ahí, como posibilidad oculta del esenciar fundante del ser, debe pertenecer nuevamente al acontecimientoapropiador.
Y en la vuelta: el acontecimiento-apropiador precisa necesariamente del ser ahí; y necesitando de él lo coloca en la llamada y así lo trae frente al paso fugaz del último dios.
La vuelta se esencia entre el llamado (al perteneciente) y el prestar oído (del que ha sido llamado). Vuelta es re-torno. La vocación al salto en el acontecimiento-apropiador es la gran calma del más oculto conocerse.
De aquí toma su origen todo lenguaje del ser-ahí y es, por tanto, esencialmente el guardar silencio (cf. comportamiento, acontecimiento-apropiador, verdad y lenguaje)
El acontecimiento-apropiador “es” así el dominio supremo, como retorno a través del volver y de la huida de los dioses que han sido. El dios extremo necesita del ser.
El llamado es a la vez acometida y falta en el secreto del acontecimiento- apropiador.
En la vuelta juegan las señales del último dios como acometida y falta del advenimiento y de la huida de los dioses y de sus dominios.
En estas señales se señala la ley del último dios, la ley de la gran singularización en el ser-ahí, de la soledad de la ofrenda, de la singularidad de la elección del más breve y escarpado trayecto.
En la esencia del hacer señas yace el secreto de la unidad entre la más íntima cercanía y el alejamiento más extremo, la máxima extensión del espacio-juego-tiempo del ser. Este extremo del esenciar del ser exige la más íntima indigencia, el abandono del ser
Este estado de indigencia pertenece necesariamente al llamado imperioso del hacer señas. Solamente lo que suena en tal prestar oídos y dispone para la amplitud es capaz de preparar para la disputa de tierra y mundo, para la verdad del Ahí, y a través de éste el sitio del instante de la decisión y, así, de la disputa y con ello del albergar en el ente.
Si este llamado del más extremo hacer señales, el secretisimo acontecimiento-apropiador, sucede aún una vez abiertamente, o si la necesidad enmudece y falta todo dominio, y si, cuando el llamado tiene lugar, es entonces percibido, si el salto en el ser-ahí y con ello, a partir de su verdad, la vuelta se hace aún historia, en esto se decide el futuro del hombre. El puede espoliar y devastar los planetas con sus maquinaciones aún por siglos, lo gigantesco de este impulso puede "desarrollarse" hacia lo inimaginable y asumir la forma de una aparente rigurosidad, de disciplinar el desierto como tal; la grandeza del ser, mientras tanto, permanece ocluida, puesto que no tiene ya lugar decisión alguna acerca de la verdad y no verdad y sobre su esencia. Tan sólo se calcula el saldo del éxito y el fracaso de las maquinaciones. Este calcular se extiende hacia una presunta "eternidad", que no es ninguna eternidad sino sólo el etcétera infinito de la fugacidad completamente devastada.
Si no es querida la verdad del ser5, si no es movido el preguntar a la voluntad de saber y experimentar, se sustrae todo espacio-tiempo al instante, al relampaguear del ser que proviene de la permanecia del acontecimiento- apropiador, simple y jamás calculable.

Pero el instante pertenece aún sólo a las soledades más solitarias, a las que queda rehusado el asentimiento fundante que instaura una historia.
Estos instantes, empero, y solamente ellos, pueden llegar a ser las solicitudes, en las cuales la vuelta del acontecimiento-apropiador se despliega y dispone hacia la verdad.
Pero, sólo la pura firmeza en lo invisiblemente simple y esencial estará madura para la preparación de tal solicitud, nunca la fugacidad de las maquinaciones, que apresuradamente se sobrepasan a sí mismas.

:256. EL ÚLTIMO DIOS
Él tiene su esenciar en la señal, en la acometida y la falta tanto del advenimiento como de la huida de los dioses que han sido y de sus cambios ocultos. El último dios no es el acontecimiento-apropiador mismo, aunque precisa de él como de aquello a lo cual pertenece el fundador-Ahí.
Como acontecimiento-apropiador, esta señal coloca al ente en el más extremo abandono del ser6 e irradía, a la vez, la verdad del ser7 como el más íntimo brillar de ese abandono.
En el dominio de la señal se encuentran nuevamente tierra y mundo en la más simple disputa: la pura oclusión y la suprema transfiguración, el más propicio encantamiento y el rapto más tremendo. Y esto cada vez regresa sólo históricamente en los estadios y ámbitos y grados en que la verdad es salvada en el ente, a través de lo cual únicamente éste se hace de nuevo más ente en toda la extinción enorme, y no obstante falsa.
En tal esenciar del hacer señas alcanza su madurez el ser mismo. La madurez es la disposición, a ser fruto y don. Aquí esencia lo último, el final esencial, exigido a partir del inicio, y no algo adicional. Aquí se revela la más íntima finitud del ser: en la señal del último dios.
En la madurez, en la riqueza para el fruto y en la grandeza del donar reside a la vez la esencia más oculta del no, como aún-no y ya-no.
Desde aquí puede vislumbrarse en el ser el intimo in-esenciarse de lo que tiene caracter negativo. Pero, conforme al esenciar del ser, en el juego del ataque y la falta, tiene el mismo no diferentes formas de su verdad, y, conforme a esta, también la tiene la nada. Si ésta resulta calculada sólo "lógicamente" a través de la negación del ente en el sentido de lo que está presente (cf. la anotación en el ejemplar de trabajo de "¿Qué es metafísica?") y es aclarada de manera estrictamente literal; con otras palabras, si el preguntar no alcanza en absoluto el ámbito de la pregunta por el ser, entonces cualquier objeción a la pregunta por la nada resulta habladuria vana, a la cual queda arrebatada cualquier posibilidad de penetrar alguna vez en el ámbito decisivo de la pregunta por la más esencial finitud del ser.
Pero este ámbito sólo resultará accesible en virtud de la preparación de un largo presagio del último dios. Y los que vendrán, que pertenecen al último dios, llegarán a estar preparados solamente por aquellos que encuentren, midan y construyan, el camino del regreso desde la experiencia del abandono del ser6. Sin el sacrificio de éstos que hacen el camino de regreso, no se llegará nunca ni siquiera al alba, la posibilidad de las señales del último dios. Estos que hacen el camino-de-regreso son los verdaderos pre-decesores de los venideros.
(Pero éstos que regresan son completamente diferentes de los muchos solamente “reactivos", cuya “acción” se agota en el ciego aferrarse a lo que ha sido visto miopemente hasta el momento de esa acción. Para éstos nunca se ha puesto de manifiesto lo sido en su inserción en lo venidero y nunca tampoco lo venidero en su llamado a lo sido).
El último dios posee su más singular singularidad y está fuera de aquella determinación calculadora que comunican los títulos “monoteísmo”, “pan-teísmo” y “a-teísmo·. El “monoteísmo” y todos los tipos del “teísmo” existen recién a partir de la “apologética” judeo-cristiana, que tiene a la metafísica como supuesto especulativo. Con la muerte de este dios caen todos los teísmos. La multiplicidad de los dioses no está sometida a ningún número, sino a la riqueza interna de los fundamentos y abismos en los lugares del instante del resplandecer y del ocultarse del hacer señales del último dios.
El último dios no es el final, sino el otro inicio de posibilidades sin medida de nuestra historia. Por eso no puede terminar la historia anterior, sino que es preciso que sea llevada hasta su final. Debemos llevar a la transición y a la disposición el transfigurarse de sus posiciones esenciales y fundamentales.
Preparar la aparición del último dios es el riesgo más extremo de la verdad del ser, y sólo en virtud de esto es posible la restitución del ente al hombre.
La más extrema cercanía del último dios se produce, entonces, cuando el  acontecimiento-apropiador,  el  vacilante  rehusarse,  alcanza  la denegación. Esto es algo esencialmente diferente de la mera ausencia La denegación, en cuanto pertenece al acontecimiento-apropiador, se deja experimentar sólo desde la esencia más originaria del ser, tal como resplandece en el pensar del otro inicio.
La denegación, como la cercanía de lo inevitable transforma al ser-ahí en algo superado; esto quiere decir: no lo derriba, sino que lo arranca elevándolo a la fundación de su libertad.
Pero si acaso un hombre puede dominar ambas cosas, el faltar aún del rumor evocador del acontecimiento-apropiador como denegación, y la realización del tránsito a la fundación de la libertad del ente como tal, del tránsito a la renovación del mundo a partir de la salvación de la tierra, ¿quién podría decidirlo y saberlo? Y así quienes se consuman en esta historia y en su fundamento, permanecen separados entre sí, como las cumbres de las montañas más distantes.
La extrema lejanía del último dios en la denegación es una cercanía peculiar, una referencia que no debe ser deformada ni apartada por ninguna “dialéctica”.
Pero la cercanía suena en la consonancia del ser con la experiencia de la indigencia del abandono del ser9. Esta experiencia, sin embargo, es el primer paso hacia el asalto del ser-ahí. Pues solamente si el hombre sale de esta indigencia lleva la necesidad misma a la iluminación, y recién  entonces conduce al júbilo del ser, y junto con éste a la libre participación.
Sólo quien piensa demasiado corto, esto es, quien nunca piensa propiamente, permanece adherido allí donde apremia un rechazo y una negación, para hallar un pretexto a la desesperación. Esto es siempre un testimonio de que no hemos aún medido completamente el giro del ser hasta el punto de encontrar allí la medida del ser ahí.
La denegación compele al ser ahí hacia sí mismo en cuanto funda el sitio del primer paso fugaz del dios, de Aquel que se niega. Recién a partir de ese instante puede estimarse cómo el ser, en tanto ámbito del acontecimiento-apropiador, debe restituir el ente a aquel estado de necesidad que supera al ente, y en el cual tiene que consumarse el homenaje al dios.
Nos hallamos en esta lucha por el último dios, y esto significa por la fundación de la verdad del ser en tanto espacio-tiempo de la tranquilidad del paso fugaz del dios (pues no somos capaces de luchar por el dios mismo); estamos necesariamente en el dominio del ser como acontecer apropiador, y con ello en la más extrema lejanía del muy brusco torbellino de la vuelta.
Debemos preparar la fundación de la verdad, y parece como si con ello estuviera ya predeterminado el homenaje y con éste la salvación del último dios. Tenemos que saber y atenemos, a la vez, a que el albergar de la verdad en el ente, y con ello la historia de la salvación del dios, sólo es exigida por él mismo y por el modo según el cual él nos necesita como fundadores del ser-ahí; exigida no como una tabla de mandamientos, sino más originariamente; y esencialmente de manera tal que su paso fugaz reclama que el ente permanezca, y con ello que lo haga el hombre que está en él; una permanencia recién en la cual el ente llegará a mantenerse firme alguna vez en la sencillez de su esencia recobrada (como obra, herramienta, cosa, hecho, mirada y palabra) ante el paso fugaz, sin detenerlo, sino más bien dejándolo gobernar como paso.
Aquí no tiene lugar ninguna redención, e.d., en el fondo, ninguna derrota del hombre, sino la colocación de la esencia más originaria (fundación del ser-ahí en el ser mismo: el reconocimiento de la pertenencia del hombre al ser a través del dios, la admisión de que el dios, sin que ello comprometa su grandeza, tiene necesidad del ser.
Es solamente aquella pertenencia al ser y esta necesidad del ser las que develan al ser en su ocultarse como aquel centro que efectúa la vuelta; centro en el que la pertenencia sobrepasa al necesitar y ~ necesitar sobrepuja a la pertenencia: es el ser como acontecimiento-apropiador que sucede a partir de este exceso de sí mismo el que efectúa la vuelta, y así se hace el origen de la disputa entre el dios y el hombre, entre el paso fugaz del dios y la historia del hombre.
Cualquier ente, por existente y único e independiente y pre-eminente que pueda aparecer al calcular y al gestionar carente de dios e inhumano, es sólo el acceso al acontecimiento-apropiador, acceso en el que buscan consolidarse los sitios del paso fugaz del último dios y la vigilancia del hombre, con miras a estar prestos para el acontecimiento-apropiador y a no oponer resistencia al ser, lo que, por cierto, hasta ahora tuvo que hacer exclusivamente el ente, tal como el propio ente y la verdad han sido hasta aquí.
Pensar la verdad del ser se logra sólo cuando en el paso fugaz del dios el hombre es manifiestamente investido por su necesidad, y así llega a lo abierto el acontecimiento-apropiador en el exceso de la vuelta, que tiene lugar entre la pertenencia humana y la necesidad divina, para exhibir el ocultarse del acontecimiento-apropiador como el centro, para exhibirse como el centro del ocultarse y acceder a ser una fuerza, y con ello llevar la libertad, en tanto ser-ahí, fundado por el salto en el fundamento del ser.
El último dios es el inicio de la historia más larga en su trayecto más corto. De larga preparación se precisa para el gran instante de su paso fugaz. Y, para preparar esto, pueblos y estados son demasiado pequeños, es decir ya demasiado sustraídos a cualquier crecimiento, sólo a merced de la maquinación.
Sólo los individuos, grandes y ocultos, procurarán la tranquilidad para el paso fugaz del dios, y establecerán entre sí el callado acuerdo, propio de aquellos que están preparados.
El ser, como lo más singular y menos frecuente, lo opuesto a la nada, habrá de retraerse de la masificación del ente; y toda historia, allí donde ella declina en su propia esencia, sólo estará al servicio de esta retirada del ser10 en su verdad más plena. Todo lo público, en cambio, se desplegará en sus éxitos y derrotas persiguiéndose vertiginosamente, de acuerdo a su manera peculiar, teniendo una vaga impresión de la nada de todo lo que sucede. Sólo entre esta masa y los auténticamente sacrificados se han de buscar y encontrar los pocos y sus alianzas, para poder vislumbrar que a ellos les sucede algo oculto, aquel paso fugaz, en oposición a todo arrastrar hacia lo veloz a cada “suceder”, para hacerlo al punto completamente manipulable y presto para ser consumido sin dejar resto. La inversión y confusión de las preguntas y de los ámbitos de las preguntas no será ya posible, porque la verdad del ser mismo, en la merma más aguda de su escisión, habrá llevado a la decisión las posibilidades esenciales. Este instante histórico no es ningún "estado ideal", porque resulta siempre contrario a la esencia de la historia; antes bien, este instante es el acontecer apropiador de aquella vuelta, en la que la verdad del ser llega al ser de la verdad, puesto que el dios precisa del ser, y el hombre, como ser-ahí, debe haber fundado la pertenencia al ser. Entonces el ser es, por este instante, en cuanto el más íntimo intersticio igual a la nada; el dios supera al hombre y el hombre sobrepuja al dios, por así decir, inmediatamente, y por cierto ambos sólo en el acontecimiento-apropiador que es la verdad del ser mismo.
Pero hasta este instante incalculable tendrá lugar una larga historia de recaídas y sumamente oscura. Este instante, además, tampoco podrá ser nunca algo tan ostensible como una “meta”. Los creadores deben prepararse a cada hora en el comportamiento del cuidado para la vigilia en el espacio-tiempo de ese paso fugaz. Y la concentración del pensamiento sobre este único punto, la verdad del ser, puede resultar sólo una senda sobre la cual lo imprevisible para el pensamiento es, no obstante, pensado; es decir, se inicia la metamorfosis de la relación entre el hombre y la verdad del ser.
 Con la cuestión del ser, que ha superado la pregunta por el ente y con ella toda “metafísica”, se ha encendido la antorcha y arriesgado la primera partida para la larga carrera. ¿Dónde está el corredor que recibe la antorcha y la alcanza a su pre-decesor? Todos los corredores, y cuanto más tardíos tanto más fuertes son, deben ser pre-decesores y no sucesores, quienes en el mejor de los casos sólo “mejoran” y refutan lo primero que se ha intentado. Los pre-decesores deben ser, siempre, tanto más originarios cuanto más los precursores (o sea aquellos que corren detrás de ellos) son iniciales, deben pensar aún más simple, rica e incondicionadamente singular lo uno y lo mismo que hay que preguntar. Lo que ellos toman, aferrando la antorcha, no puede ser lo ya dicho como “doctrina” y “sistema” o algo semejante, sino la obligación que sólo se abre a aquellos que son de procedencia abismal, a aquellos que forman parte de los obligados.
Pero lo que obliga es sólo lo no calculable, lo no factible, propio del acontecimiento-apropiador, la verdad del ser. Dichoso aquel a quien le es permitido pertenecer a la desdicha de su escisión para ser siervo en la interlocución siempre inicial de los solitarios, en la cual penetra el último dios haciendo señales, porque a través de esa interlocución el dios, en su paso fugaz, lo toma haciéndole señas.
El ultimo dios no es ningún final, sino el lanzarse en sí del inicio, y con ello la forma suprema de la denegación, ya que lo inicial se rehúsa a toda fijación y se esencializa solamente cuando sobrepuja a todo lo que ya se halla capturado en él como venidero y es entregado a su fuerza determinante.
El final está solamente allí donde el ente se ha desprendido de la verdad del ser y ha negado toda dignidad del preguntar, esto quiere decir, toda diferencia, para comportarse de acuerdo a posibilidades infinitas de lo que ha sido así abandonado en un tiempo infinito. El final es el interminable etcétera, al que lo Último, en tanto lo más inicial, se ha sustraído desde el inicio y ya desde hace largo tiempo. El final no se ve nunca a sí mismo, sino que se tiene por la consumación, y por tanto no está en lo más mínimo listo y preparado ni para esperar ni para experimentar lo Último.
Procedentes de una posición respecto del ente que se halla determinada por la “metafísica”, sólo con dificultad y lentamente llegaremos a conocer lo Otro; sabremos que el dios no aparece ni en la “vivencia” “personal” ni en la “masiva”, sino únicamente en el “espacio” abismal del ser mismo. Todos los “cultos” y las “iglesias”, como todas las cosas semejantes que se han dado hasta ahora, no pueden llegar a ser la preparación esencial del choque del dios y del hombre en el centro del ser. Pues primeramente debe ser fundada la verdad del ser mismo; y para corresponder a esta tarea, todo crear debe tomar otro inicio.
Cuán pocos saben que el dios espera la fundación de la verdad del ser, y con esto el salto del hombre en el ser-ahí. En lugar de ello, parece como si el hombre esperara y debiera esperar al dios. Quizá es ésta la forma más capciosa del más profundo ateísmo y el ensordecimiento de la impotencia para el padecimiento del acontecer apropiador de aquel advenir-ahí-intermedio del ser, que es el único que ofrece un sitio al acceso del ente en la verdad, y le asigna lo justo, que consiste en hallarse en la más lejana distancia del paso fugaz del último dios; lo justo, cuya asignación sólo sucede como historia: transmutando al ente en la esencialidad de su determinación y liberándolo del abuso de las maquinaciones, que lo trastornan todo y agotan al ente en el usufructo.

: NOTAS.
1.-El siguiente texto corresponde a la séptima sección del libro de Martín Heidegger Beitrage zur Philosophie. (Vom Ereignis). (Contribuciones a la filosofía. Sobre el acontecimiento-apropiador) Ed. por Friedrich-Wilhelm von Herrmann. Gesamtausgabe vol. 65. Frankfurt am Main 1989. Vittorio Kostermann. N. del t.
2.- Heidegger escribe a lo largo de la presente sección de su obra mayormente Seyn. Utiliza aquí Sein en el compuesto Seinsverlassenheit (abandono del ser), en la expresión Wahrheit des Seins (verdad del ser) y en Entzug des Seins (retirada del ser), allí donde lo señalo. N. del t.
3.- Sein.
*Aquí es preciso ver el acontecimiento-apropiador en relación al hombre, que a partir de él resulta determinado como ser ahí.
4.- Sien.
5.- Sein.
6.- Sein.
7.- Sein.
8.- Sein.
9.- Sein.
10.- Sein.
Martin Heidegger 
Mi agradecimiento a Nicolás Di Biase, quien gentilmente me envió este texto

domingo, 30 de abril de 2017

Exigencias «desenmascaradoras» de la escuela de la sospecha.



Armas que recuerdan las exigencias «desenmascaradoras» de la escuela de la sospecha.

El pasado, tal como nos es transmitido por la escritura -es decir, como pura idealidad, sin contaminaciones y mediaciones espurias con el presente, que se dan siempre en lo hablado-, conquista una paradójica simultaneidad con el presente. Una contemporaneidad que se contradistingue, además, por una fuerte transparencia, por una «evidencia» peculiar del escrito mismo; en resumen, por una voluntad de comunicar, que Gadamer acepta como si no encerrara prácticamente ningún problema: «En todo lo que nos ha llegado bajo la forma de escritura late una voluntad de persistencia, forjada por esa peculiar forma de permanencia que llamamos literatura. En ella no se nos entrega sólo un conjunto de monumentos y de signos. Al contrario, todo lo perteneciente a la literatura goza de una específica contemporaneidad con cualquier presente. Comprender la literatura no significa principalmente remontarse hasta una existencia pasada, sino participar, en el presente, de un contenido de lo expuesto» [xviii].

La voluntad reconstructiva desearía restituir en la interpretación el pasado en cuanto pasado, el origen en toda su integridad, la verdad objetiva de las intenciones del autor de un texto. Por su parte, las consideraciones de Gadamer, aunque dirigidas contra este intento, propenden a definir lo escrito, en cuanto vehículo de la tradición, en los términos de una idealidad abstracta del lenguaje. Al respecto, escribe Gadamer: «En lo escrito, el lenguaje alcanza su verdadera espiritualidad, ya que, ante la tradición escrita, la conciencia que comprende se eleva hasta una posición de plena soberanía. Ya no depende de nada extraño. De esta suerte, la conciencia que lee se encuentra potencialmente en posesión de la historia» [xix].

(.)

Ante este hacerse presente, puede entenderse mejor por qué Derrida se ha decidido a lanzar la hipótesis de una gramatología: la hermenéutica de una tradición que ya no es considerada como conjunto coherente de textos virtualmente simultáneos a nosotros, y transparentes a la lectura, sino como análisis de cesuras, de las discontinuidades, de la falta de transparencia fundamental de una traditio que ha cesado de pertenecernos o que jamás ha sido nuestra. Desde esta perspectiva, los objetos de la interpretación -antes que nada, los textos- no se ofrecen en su «verdadera espiritualidad», sino más bien en un estado de opaca materialidad, como «monumentos» o como «signos»; o como huellas que jamás podrán hacerse presentes, si queremos adoptar la terminología de Derrida. Y la operación hermenéutica no pretende ni reconstruir el pasado, como sucede en la escuela de la sospecha, ni integrarlo en el presente, según el modelo de Gadamer, sino que, al contrario, intenta de-construir una tradición compuesta por huellas y textos que nunca serán plenamente inteligibles.

De hecho, el objetivo fundamental de la deconstrucción consiste, propiamente, en pensar la diferencia, la distancia que separa nuestra interpretación de los objetos a los que sé aplica. La actividad hemenéutica se transforma, a estas alturas, en una pregunta sin respuesta; tiene valor, sobre todo, como ejercicio ontológico, como indicación de la inconmensurablidad del comprender respecto al objeto de la comprensión. «La interrogación -escribe Derrida en un ensayo sobre Lévinas- debe ser conservada. Pero como interrogación. La libertad de la interrogación (doble genitivo) debe ser afirmada y defendida. Permanencia fundamentada, tradición realizada por la interrogación que no deja de ser interrogación»[xxi].

Aquí, la tradición se mantiene sólo como objeto hermenéutico, como unidad temática de la interpretación; pero no ofrece, como sucedía en Gadamer, un criterio positivo de comprensión, una legitimación «histórica» (todo lo debilitada y no transparente que se quiera) del acto interpretativo. En relación a la hermenéutica re-constructiva o integradora, la de-construcción preconizada por Derrida se presenta como la disolución extrema del propósito de comprender auténticamente, de introducirse hasta el núcleo, si no de las cosas, al menos del lenguaje como tradición, depósito, repertorio de palabras-clave filosóficas.

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El efecto más inmediato de la gramatología es, como hemos visto, la crítica respecto al «continuismo» gadameriano. En cierto sentido, Derrida empuña, contra la hermenéutica de la «integración», armas que recuerdan las exigencias «desenmascaradoras» de la escuela de la sospecha.

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Maurizio Ferraris

Traducción de Luis de Santiago, en VATTIMO, G., ROVATTI, P. A. (eds.) El pensamiento débil, Cátedra, Madrid, 2000, pp. 169-191. Edición digital de Derrida en Castellano.