domingo, 12 de fevereiro de 2017
Linguagem e política em Agamben
A Ciência não deve se imiscuir indevidamente na Espiritualidade, nem Espiritualidade deve se imiscuir indevidamente na Ciência. Circunscrição própria e respeito pelas vastas competências dos campos opostos, gravemente as grandes sínteses necessárias do entendimento, capaz de acelera-lo.
K.M.
Por: Peter Pál Pelbart
Fonte: http://www.rizoma.net/interna.php?id=326&secao=artefato
Uma constatação trivial é evocada com insistência por vários autores contemporâneos, entre eles Giorgio Agamben, Jean-Luc Nancy, Toni Negri ou mesmo Maurice Blanchot. A saber, de que vivemos hoje uma crise do ‘comum’.
As formas que antes pareciam garantir aos homens um contorno comum, e asseguravam alguma consistência ao laço social, perderam sua pregnância e entraram definitivamente em colapso, desde a esfera dita pública, até os modos de associação consagrados, comunitários, nacionais, ideológicos, partidários, sindicais. Perambulamos em meio a espectros do comum: a mídia, a encenação política, os consensos econômicos consagrados, mas igualmente as recaídas étnicas ou religiosas, a invocação civilizatória calcada no pânico, a militarização da existência para defender a ‘vida’ supostamente ‘comum’, ou, mais precisamente, para defender uma forma-de-vida dita ‘comum’.
No entanto, sabemos bem que esta ‘vida’ ou esta ‘forma-de-vida’ não é realmente ‘comum’, que quando compartilhamos esses consensos, essas guerras, esses pânicos, esses circos políticos, esses modos caducos de agremiação, ou mesmo esta linguagem que fala em nosso nome, somos vítimas ou cúmplices de um seqüestro. Se de fato há hoje um sequestro do comum, uma expropriação do comum, ou uma manipulação do comum, sob formas consensuais, unitárias, espetacularizadas, totalizadas, transcendentalizadas, é preciso reconhecer que, ao mesmo tempo e paradoxalmente, tais figurações do ‘comum’ começam a aparecer finalmente naquilo que são, puro espectro.
Num outro contexto, Gilles Deleuze lembra que a partir sobretudo da segunda guerra mundial, os clichês começaram a aparecer naquilo que são, meros clichês, os clichês da relação, os clichês do amor, os clichês do povo, os clichês da política ou da revolução, os clichês daquilo que nos liga ao mundo – e é quando eles assim, esvaziados de sua pregnância, se revelaram como clichês, isto é, imagens prontas, pré-fabricadas, esquemas reconhecíveis, meros decalques do empírico, somente então pôde o pensamento liberar-se deles e abrir-se para outras dimensões do comum.
Ora, hoje, tanto a percepção do sequestro do comum como a revelação do caráter espectral desse comum transcendentalizado se dá em condições muito específicas. A saber, precisamente num momento em que o comum, e não a sua imagem, está apto a aparecer de maneira imanente, dado o contexto produtivo atual. Trocando em miúdos: diferentemente de algumas décadas atrás, em que o comum era definido mas também vivido como aquele espaço abstrato, que conjugava as individualidades e se sobrepunha a elas, seja como espaço público ou como política, hoje o comum pode ser pensado como o espaço produtivo por excelência.
O contexto contemporâneo trouxe à tona, de maneira inédita na história, pois no seu núcleo propriamente econômico, a prevalência do ‘comum’. O trabalho dito imaterial, a produção pós-fordista, o capitalismo cognitivo, todos eles são fruto da emergência do comum: eles todos requisitam faculdades vinculadas ao que nos é mais comum, a saber a linguagem, e seu feixe correlato, a inteligência, os saberes, a cognição, a memória, a imaginação, e por conseguinte a inventividade comum. Mas também requisitos subjetivos vinculados à linguagem, tais como a capacidade de comunicar, de relacionar-se, de associar, de cooperar, de compartilhar a memória, de forjar novas conexões e fazer proliferar as redes.
Nesse contexto de um capitalismo em rede ou conexionista, que alguns até chamam de rizomático, pelo menos idealmente aquilo que é comum é posto para trabalhar em comum. Nem poderia ser diferente: afinal, o que seria uma linguagem privada? O que viria a ser uma conexão solipsista? Que sentido teria um saber exclusivamente autoreferido? Pôr em comum o que é comum, colocar para circular o que já é patrimônio de todos, fazer proliferar o que está em todos e por toda parte, seja isto a linguagem, a vida, a inventividade. Mas essa dinâmica assim descrita só parcialmente corresponde ao que de fato acontece, já que ela se faz acompanhar pela expropriação do comum, privatização, cristalização do comum, empreendida pelas diversas empresas, máfias, estados, instituições, com finalidades que o capitalismo biopolítico não pode dissimular, mesmo em suas versões mais rizomáticas.
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