domingo, 27 de novembro de 2016

Glosses...

"Uma das grandes manobras dos espreitadores é contrapor o mistério à estupidez que há em cada um de nós." 

Explicou que as práticas da espreita não são coisas para alguém se rejubilar; na verdade, são completamente censuráveis. 

Sabendo disso, os novos videntes percebem que seria contra o interesse geral discutir ou praticar os princípios de espreita em consciência normal. 

Apontei-lhe uma incongruência. Ele dissera que não há meios de os guerreiros agirem no mundo enquanto se encontram em consciência intensificada, e também que espreitar é simplesmente comportar-se diante de pessoas de maneiras específicas. As duas afirmações contradiziam-se mutuamente. 

- Por não ensiná-la em consciência normal referia-me apenas a ensiná-la a um nagual - disse ele. - O propósito de espreitar é duplo: primeiro, deslocar o ponto de aglutinação tão firmemente e a salvo quanto possível, e nada pode fazê-lo tão bem quanto a espreita; segundo, imprimir seus princípios a um nível tão profundo que o inventário humano seja ultrapassado, assim como a reação natural de recusar e julgar algo que possa ser ofensivo à razão. 

Falei que duvidava sinceramente que eu conseguisse julgar ou recusar algo dessa forma. Riu e disse que eu não podia ser uma exceção, que iria reagir como todos os outros quando ouvisse sobre os feitos de um mestre espreitador, como seu benfeitor, o nagual Julian. 

- Não estou exagerando quando lhe digo que o nagual Julian era o mais extraordinário espreitador que jamais conheci disse Dom Juan. - Você já ouviu de todos sobre seus talentos de espreita. Mas nunca lhe contei o que ele fez comigo.” 

O Fogo Interior, pág. 178 

“- A arte de espreitar é aprender todos os truques de seu disfarce - retrucou Belisário, não dando atenção ao que Don Juan lhe dizia. - E devem ser apreendidos com tanta eficiência que ninguém perceba o seu disfarce. Para isso, você precisa ser implacável, esperto, paciente e agradável.” 
O Poder do Silêncio, pág. 78 

“- Essa sensação de estar arrolhado é experimentada por todo ser humano. É um lembrete da existência de nossa conexão com o intento. Para os feiticeiros essa sensação é ainda mais aguda, precisamente porque seu objetivo é sensibilizar seu elo de conexão até que possam fazê-lo funcionar à vontade. 

"Quando a pressão de seu elo de conexão é grande demais, os feiticeiros aliviam-na espreitando a si mesmos.” 

- Ainda acho que não compreendo o que quer dizer por espreitar - falei. - Mas em certo nível penso que sei exatamente o que quer dizer. 

- Tentarei ajudar você a esclarecer o que sabe, então. Espreitar é um procedimento, um procedimento muito simples. Espreitar é comportamento especial que segue certos princípios. 

É um comportamento secreto, furtivo, enganoso, designado a provocar um choque. E quando você espreita a si mesmo, você choca a si mesmo, usando seu próprio comportamento de um modo implacável e astucioso. 

Explicou que quando a consciência de um feiticeiro ficava enredada pelo peso de suas aquisições perceptivas, o que estava acontecendo comigo, o melhor, ou talvez o único remédio, era usar a idéia da morte para proporcionar esse choque de espreita. 

- A idéia da morte, portanto, é de importância monumental na vida de um feiticeiro - continuou Don Juan. - Mostrei-lhe coisas inumeráveis a respeito da morte para convencê-lo de que o conhecimento de nosso fim pendente e inevitável é o que nos dá sobriedade. Nosso engano mais caro como homens comuns é não se importar com o senso de imortalidade. É como se acreditássemos que, se não pensássemos a respeito da morte, nos pudéssemos proteger dela.” 

O Poder do Silêncio, pág. 115 

“- O primeiro princípio da arte de espreitar é que os guerreiros escolhem seu campo de batalha - disse. - Um guerreiro nunca entra na batalha sem saber o que o cerca. A curandeira tinha me mostrado, na sua batalha com Celestino, o princípio da espreita. Depois ela veio para onde eu me encontrava deitada. Eu estava chorando. Era a única coisa que podia fazer. Ela pareceu preocupada; cobriu meus ombros com o cobertor, sorriu e piscou o olho para mim. "O trato continua - disse. - Volte assim que puder, se quiser viver. Mas não traga seu mestre com você, sua putinha. Venha com os que forem absolutamente necessários". 

Florinda fixou os olhos em mim por algum tempo. Pelo seu silêncio concluí que ela esperava comentários da minha parte. 

- Descartar tudo o que for necessário é o princípio da arte de espreitar - disse ela, sem me dar tempo de dizer nada. 

O Presente da Águia, pág. 221 

"A espreita é a atividade central de um rastreador de energia. Embora possa ser aplicado com resultados surpreendentes a nosso tratamento com as pessoas, está desenhado principalmente para afinar o próprio praticante. Manipular e dominar os outros é uma tarefa árdua, mas é incomparavelmente mais difícil dominar a nós mesmos. Por isso a espreita é a técnica que distingue o nagual. 

"A espreita pode ser definida como a habilidade de fixar o ponto de aglutinação em novas posições. 
"O guerreiro que espreita é um caçador. Mas, ao contrário do caçador ordinário que tem a visão fixa em seus interesses materiais, o guerreiro persegue uma presa maior: sua importância pessoal. Isso o prepara para enfrentar o desafio de lidar com seus semelhantes - algo que o ensonho não pode resolver por si só. Os bruxos que não aprendem a espreitar se transformam em pessoas mal humoradas". 

"Porque?" 

"Porque eles não têm a paciência para tolerar as bobagens das pessoas. 

"A espreita é natural para nós devido a uma característica.de nossa herança animal: para sobreviver, todos desenvolvemos hábitos de comportamento que moldam nossa energia e nos adaptam ao meio. Estudando essas rotinas, um observador atento pode predizer com precisão o comportamento de um animal ou um ser humano em um determinado momento. 

"Os guerreiros sabem que toda forma de hábito é um vício. Pode amarrá-lo ao consumo de drogas ou ir para a igreja todos os domingos; a diferença é de forma, não de essência. Da mesma maneira, quando pensamos que o mundo é razoável ou que as coisas em que acreditamos é a única verdade, estamos sendo as vítimas de um hábito que oblitera nossos sentidos, fazendo com que só vejamos o que nos seja familiar. 

"As rotinas são padrões de comportamento que seguimos de um modo mecânico, embora já não tenham sentido. Para espreitar é necessário sair do imperativo da sobrevivência. 

"Devido ao fato de que ele é o dono de suas decisões, um guerreiro espreitador é uma pessoa que baniu da vida dele todo o vestígio de hábito. Só tem que recuperar sua integridade energética para ser livre. E como ele tem liberdade de escolher, pode envolver-se em formas calculadas de comportamento, seja para tratar com as pessoas ou com outras entidades conscientes. 
Encontros com o Nagual, pág. 142 

"Não se complique. Você está tentando caricaturizar o ensinamento. Se você quiser espreitar, observe-se a si mesmo. Todos nós somos uns excelentes caçadores, a espreita é nosso dom natural. Quando a fome aperta, ficamos mais atentos; as crianças choram e alcançam o que querem; as mulheres enrodilham os homens e os homens se vingam entre si, enganando-se em seus negócios. Espreitar é conseguir seu objetivo. 

"Se você se dá conta do mundo em que vive, entenderá que manter-se atento a ele, é um tipo de espreita. Considerando que nós aprendemos isso antes que a nossa capacidade de discriminação se desenvolvesse, o damos como um fato natural e quase nunca o questionamos. Porém, todas as nossas ações, até mesmo as mais altruístas, estão, no fundo, impregnadas do instinto do caçador. 

"O homem comum não sabe que espreita porque seu caráter foi subjugado pela socialização. Está convencido de que sua existência é importante; dessa forma, suas ações estão a serviço de sua importância pessoal, não do aumento de sua consciência"- 
Encontros com o Nagual, pág. 145 

(..)

Sam Keen: Então um feiticeiro, como um hipnólogo, cria um mundo alternativo construindo diferentes expectativas e fornecendo pistas premeditadas para produzir um consenso social.

Carlos Castaneda: Exatamente. Eu comecei a entender feitiçaria nos termos da idéia de interpretação [glosses] de Talcott Parsons. Uma interpretação [gloss] é um sistema completo de percepção e linguagem. Por exemplo, esta sala e é uma interpretação. Nós reunimos juntos uma série de percepções isoladas: chão, teto, janela, luzes, tapete, etc para compor uma totalidade. Mas nós temos que ser ensinados a dispor o mundo junto desta forma. Uma criança experimenta o mundo com poucos pré-conceitos até que é ensinada a vê-lo de uma forma que corresponde à descrição que todos compartilham. O sistema de interpretações parece um pouco com caminhar. Nós temos que aprender a caminhar, mas uma vez que aprendemos ficamos sujeitos à sintaxe da linguagem e ao modo de percepção que ela contém.

Sam Keen:Então a feitiçaria, assim como a arte, ensina um novo sistema de anotações. Quando, por exemplo, Van Gogh rompe com a tradição artística e pinta. O Céu Estrelado [The Starry Night], ele estava efetivamente dizendo: aqui está uma nova maneira de ver as coisas. As estrelas estão vivas e rodam em volta de seus campos energéticos.

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