Os valores que dependem desse velho elemento do negativo, os valores que caem sob a crítica radical, são todos os valores conhecidos ou conhecíveis até este dia. "Até este dia" designa o dia da transmutação. Mas o que significa: todos os valores conhecíveis? O niilismo é a negação como qualidade da vontade de poder. Entretanto, essa definição permanece insuficiente se não se leva em conta o papel e a função do niilismo: a vontade de poder aparece no homem e nele se faz conhecer como uma vontade de nada. E, para dizer a verdade, pouco saberíamos sobre a vontade de poder se não captássemos sua manifestação no ressentimento, na má consciência, no ideal ascético, no niilismo que nos força a conhecê-la. A vontade de poder é espírito, mas que saberíamos do espírito sem o espírito de vingança que nos revela estranhos poderes? A vontade de poder é corpo, mas o que saberíamos do corpo sem a doença que faz com que o conheçamos? Assim também o niilismo, a vontade de nada, não é apenas uma vontade de poder, uma qualidade de vontade de poder, mas a ratio cognoscendi da vontade de poder em geral. Todos os valores conhecidos e conhecíveis são, por natureza, valores que derivam dessa razão. – Se o niilismo nos faz conhecer a vontade de poder, esta nos ensina, inversamente, que ela nos é conhecida sob uma única forma, sob a forma do negativo que constitui apenas uma de suas faces, uma qualidade. Nós "pensamos" a vontade de poder sob uma forma distinta daquela sob a qual a conhecemos (assim o pensamento do eterno retorno ultrapassa todas as leis de nosso conhecimento). Longínqua sobrevivência dos temas de Kant e de Schopenhauer: o que conhecemos da vontade de poder é também dor e suplício, mas a vontade de poder é ainda a alegria desconhecida, a felicidade desconhecida, o deus desconhecido. Ariana canta em sua queixa: "Eu me curvo e me torço, atormentada por todos os martírios eternos, atingida por ti, caçador mais cruel, tu, o deus – desconhecido... Fala, enfim, tu que te escondes atrás dos relâmpagos? Desconhecido! fala! Que queres... ? O volta, meu deus desconhecido! minha dor! minha última felicidade (68)." A outra face da vontade de poder, a face desconhecida, a outra qualidade da vontade de poder, a qualidade desconhecida: a afirmação. Esta, por sua vez, não é apenas uma vontade de poder, uma qualidade de vontade de poder, ela é ratio essendi da vontade de poder em geral.
67) VP, liv. III, – VP, I, 22: "Tendo levado nele mesmo o niilismo até seu término, colocou-o atrás dele, abaixo dele, fora dele."
68) DD, "Lamentação de Ariana".
Ela é ratio essendi de toda a vontade de poder, portanto razão que expulsa o negativo dessa vontade, como a negação era ratio cognoscendi de toda a vontade de poder (portanto razão que não deixava de eliminar o afirmativo do conhecimento dessa vontade). Da afirmação derivam os valores novos: valores desconhecidos até este dia, isto é, até o momento em que o legislador toma o lugar do "erudito", a criação toma o lugar do próprio conhecimento, a afirmação o lugar de todas as negações conhecidas. – Vemos então que, entre o niilismo e a transmutação, existe uma relação mais profunda do que a que indicávamos no início. O niilismo exprime a qualidade do negativo como ratio cognoscendi da vontade de poder; mas ele não se acaba sem se transmudar na qualidade contrária, na afirmação como ratio essendi dessa mesma vontade. Transmutação dionisíaca da dor em alegria, que Dionísio, em resposta a Ariana, anuncia com o mistério conveniente: "Não é preciso primeiro odiarmo-nos quando nos devemos amar (69)?" Quer dizer: não deves conhecer-me como negativo se deves sentir-me como afirmativo, esposar-me como o afirmativo, pensar-me como a afirmação (69)?
Mas porque a transmutação seria o niilismo acabado se é verdade que ela se contenta em substituir um elemento pelo outro? Aqui deve intervir uma terceiril razão a quaJ arrisca passar despercebida à medida que as distinções de Nietzsche se tornam tão sutis ou minuciosas. Retomemos a história do niilismo e de seus estágios sucessivos: negativo, reativo, passivo. As forças reativas devem seu triunfo à vontade de nada; uma vez conquistado o triunfo, rompem sua aliança com essa vontade, querem, sozinhas, fazer valer seus próprios valores. Eis o grande acontecimento ruidoso: o homem reativo no lugar de Deus. Sabe-se qual é o resultado: o último dos homens, aquele que prefere um nada de vontade (extinguir-se passivamente) a uma vontade de nada. Mas este é um resultado para o homem reativo, não para a própria vontade de na·da. Esta prossegue sua obra, desta vez em silêncio, além do homem reativo. Quando as forças reativas rompem sua aliança com a vontade de nada, esta, por sua vez, rompe sua aliança com as forças reatlvas. Inspira ao homem um novo gosto: destruir-se, mas destruir-se ativamente. Não se deve confundir o que Nietzsche chama auto-destruição, destruição ativa, com a extinção passiva do último dos homens. Não se deve confundir, na terminologia de Nietzsche, "o último dos homens" com "o homem que quer perecer" (70). Um é o último produto do devir reativo, a última maneira pela qual o homem reativo se conserva, quando está cansado de querer. o outro é o produto de uma seleção, que sem dúvida passa pelos últimos homens, mas que não pára aí. Zaratustra canta o homem da destruição ativa: ele quer ser superado, vai além do humano, já no caminho do super-homem, "ultrapassando a ponte", pai e ancestral do super-homem. "Amo aquele que vive para conhecer e que quer conhecer, para que um dia viva o super-homem. Por isso ele quer seu próprio declínio (71)." Zaratustra quer dizer: amo aquele que se serve do niilismo como da ratio cognoscendi da vontade de poder, mas que encontra nesta uma ratio essendi na qual o homem é superado e, portanto, o niilismo vencido.
69) DD, "Lamenlação de Ariana".
70) Sobre a destruição ativa. VP, lU, 8 e 12. – Como Zaratustra opõe "o homem que quer perecer" aos últimos homens ou "pregadores da morte": Z, Prólogo. 4 e 5, I. "Os pregadores da morte"
71) Z, Prólogo. 4.
A destruição ativa significa o ponto, o momento de transmutação na vontade de nada. A destruição torna-se ativa no momento em que, estando rompida a aliança entre as forças reativas e a vontade de nada, esta última se converte e passa para o lado da afirmação, relaciona-se com um poder de afirmar que destrói as próprias forças reativas. A destruição torna-se ativa à medida que o negativo é transmudado, convertido em poder afirmativo: "eterna alegria do devir" que se declara num instante, "alegria do aniquilamento", "afirmação do aniquilamento" (72). Este é o "ponto decisivo" da filosofia dionisíaca: o ponto no qual a negação exprime uma afirmação da vida, destrói as forças reativas e restaura a atividade em seus direitos. O negativo torna-se o trovão e o relâmpago de um poder de afirmar. Ponto supremo focal ou transcendente, Meia-noite, que não é definido em Nietzsche por um equilíbrio ou uma reconciliação dos cor trários, mas por uma conversão. Conversão do negativo em seu contrário, conversão da ratio cognoscendina ratio essendi da vontade de poder. Perguntávamos: porque a transmutação é o niilismo acabado? Porque, na transmutação, não se trata de uma simples substituição, mas de uma conversão. É passando pelo último dos homens, mas indo além, que o niilismo encontra seu acabamento: no homem que quer perecer, que quer ser superado, a negação rompeu tudo o que ainda a retinha, venceu a si mesma, tornou-se poder de afirmar, já é poder do super-homem, poder que anuncia e prepara o super-homem. "Vocês poderiam se transformar em pais e ancestrais do Super-homem: que isto seja o melhor de sua obra (73)!" Sacrificando todas as forças reativas, tornando-se "destruição impiedosa de tudo o que apresenta caracteres degenerados e parasitários", passando para o serviço de um excedente da vida (74): somente aí a negação encontra seu acabamento.
Gilles Deleuze
Nietzsche e a Filosofia
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