sábado, 19 de novembro de 2016

PONTO FOCAL

Os valores que dependem desse velho elemento do negativo, os valores que caem sob a crítica radical, são todos os valores conhecidos ou conhecíveis até este dia. "Até este dia" designa o dia da transmutação. Mas o que significa: todos os valores conhecíveis? O niilismo é a negação como qualidade da vontade de poder. Entretanto, essa definição permanece insuficiente se não se leva em conta o papel e a função do niilismo: a vontade de poder aparece no homem e nele se faz conhecer como uma vontade de nada. E, para dizer a verdade, pouco saberíamos sobre a vontade de poder se não captássemos sua manifestação no ressentimento, na má consciência, no ideal ascético, no niilismo que nos força a conhecê-la. A vontade de poder é espírito, mas que saberíamos do espírito sem o espírito de vingança que nos revela estranhos poderes? A vontade de poder é corpo, mas o que saberíamos do corpo sem a doença que faz com que o conheçamos? Assim também o niilismo, a vontade de nada, não é apenas uma vontade de poder, uma qualidade de vontade de poder, mas a ratio cognoscendi da vontade de poder em geral. Todos os valores conhecidos e conhecíveis são, por natureza, valores que derivam dessa razão. – Se o niilismo nos faz conhecer a vontade de poder, esta nos ensina, inversamente, que ela nos é conhecida sob uma única forma, sob a forma do negativo que constitui apenas uma de suas faces, uma qualidade. Nós "pensamos" a vontade de poder sob uma forma distinta daquela sob a qual a conhecemos (assim o pensamento do eterno retorno ultrapassa todas as leis de nosso conhecimento). Longínqua sobrevivência dos temas de Kant e de Schope­nhauer: o que conhecemos da vontade de poder é também dor e suplício, mas a vontade de poder é ainda a alegria desconhecida, a felicidade desconhecida, o deus desconhecido. Ariana canta em sua queixa: "Eu me curvo e me torço, atormentada por todos os martírios eternos, atingida por ti, caçador mais cruel, tu, o deus – desconhecido...  Fala, enfim, tu que te escondes atrás dos relâmpa­gos? Desconhecido! fala! Que queres...  ? O volta, meu deus desconhecido! minha dor! minha última felicidade (68)." A outra face da vontade de poder, a face desconhecida, a outra qualidade da vontade de poder, a qualidade desconhecida: a afirmação. Esta, por sua vez, não é apenas uma vontade de poder, uma qualidade de vontade de poder, ela é ratio essendi da vontade de poder em geral. 

67) VP, liv. III, – VP, I, 22: "Tendo levado nele mesmo o niilismo até seu término, colocou-o atrás dele, abaixo dele, fora dele." 
68) DD, "Lamentação de Ariana". 


Ela é ratio essendi de toda a vontade de poder, portanto razão que expulsa o negativo dessa vontade, como a negação era ratio cognoscendi de toda a vontade de poder (portanto razão que não deixava de eliminar o afirmativo do conheci­mento dessa vontade). Da afirmação derivam os valores novos: valores desconhe­cidos até este dia, isto é, até o momento em que o legislador toma o lugar do "erudito", a criação toma o lugar do próprio conhecimento, a afirmação o lugar de todas as negações conhecidas. – Vemos então que, entre o niilismo e a transmutação, existe uma relação mais profunda do que a que indicávamos no início. O niilismo exprime a qualidade do negativo como ratio cognoscendi da vontade de poder; mas ele não se acaba sem se transmudar na qualidade contrária, na afirmação como ratio essendi dessa mesma vontade. Transmutação dionisíaca da dor em alegria, que Dionísio, em resposta a Ariana, anuncia com o mistério conveniente: "Não é preciso primeiro odiarmo-nos quando nos devemos amar (69)?" Quer dizer: não deves conhecer-me como negativo se deves sentir-me como afirmativo, esposar-me como o afirmativo, pensar-me como a afirmação (69)? 

Mas porque a transmutação seria o niilismo acabado se é verdade que ela se contenta em substituir um elemento pelo outro? Aqui deve intervir uma terceiril razão a quaJ arrisca passar despercebida à medida que as distinções de Nietzsche se tornam tão sutis ou minuciosas. Retomemos a história do niilismo e de seus estágios sucessivos: negativo, reativo, passivo. As forças reativas devem seu triunfo à vontade de nada; uma vez conquistado o triunfo, rompem sua aliança com essa vontade, querem, sozinhas, fazer valer seus próprios valores. Eis o grande acontecimento ruidoso: o homem reativo no lugar de Deus. Sabe-se qual é o resultado: o último dos homens, aquele que prefere um nada de vontade (extinguir-se passivamente) a uma vontade de nada. Mas este é um resultado para o homem reativo, não para a própria vontade de na·da. Esta prossegue sua obra, desta vez em silêncio, além do homem reativo. Quando as forças reativas rompem sua aliança com a vontade de nada, esta, por sua vez, rompe sua aliança com as forças reatlvas. Inspira ao homem um novo gosto: destruir-se, mas destruir-se ativamente. Não se deve confundir o que Nietzsche chama auto-des­truição, destruição ativa, com a extinção passiva do último dos homens. Não se deve confundir, na terminologia de Nietzsche, "o último dos homens" com "o homem que quer perecer" (70). Um é o último produto do devir reativo, a última maneira pela qual o homem reativo se conserva, quando está cansado de querer. o outro é o produto de uma seleção, que sem dúvida passa pelos últimos homens, mas que não pára aí. Zaratustra canta o homem da destruição ativa: ele quer ser superado, vai além do humano, já no caminho do super-homem, "ultrapassando a ponte", pai e ancestral do super-homem. "Amo aquele que vive para conhecer e que quer conhecer, para que um dia viva o super-homem. Por isso ele quer seu próprio declínio (71)." Zaratustra quer dizer: amo aquele que se serve do niilismo como da ratio cognoscendi da vontade de poder, mas que encontra nesta uma ratio essendi na qual o homem é superado e, portanto, o niilismo vencido. 

69) DD, "Lamenlação de Ariana". 
70) Sobre a destruição ativa. VP, lU, 8 e 12. – Como Zaratustra opõe "o homem que quer perecer" aos últimos homens ou "pregadores da morte": Z, Prólogo. 4 e 5, I. "Os pregadores da morte" 
71) Z, Prólogo. 4. 

A destruição ativa significa o ponto, o momento de transmutação na vontade de nada. A destruição torna-se ativa no momento  em que, estando rompida a aliança entre as forças reativas e a vontade de nada, esta última se converte e passa para o lado da afirmação, relaciona-se com um  poder de afirmar que destrói as próprias forças reativas. A destruição torna-se ativa à medida que o negativo é transmudado, convertido em poder afirmativo: "eterna alegria do devir" que se declara num instante, "alegria do aniquilamento", "afirmação do aniquilamento" (72). Este é o "ponto decisivo" da filosofia dionisíaca: o ponto no qual a negação exprime uma afirmação da vida, destrói as forças reativas e restaura a atividade em seus direitos. O negativo torna-se o trovão e o relâmpago de um poder de afirmar. Ponto supremo focal ou transcendente, Meia-noite, que não é definido em Nietzsche por um equilíbrio ou uma reconciliação dos cor trá­rios, mas por uma conversão. Conversão do negativo em seu contrário, conversão da ratio cognoscendina ratio essendi da vontade de poder. Perguntávamos: porque a transmutação é o niilismo acabado? Porque, na transmutação, não se trata de uma simples substituição, mas de uma conversão. É passando pelo último dos homens, mas indo além, que o niilismo encontra seu acabamento: no homem que quer perecer, que quer ser superado, a negação rompeu tudo o que ainda a retinha, venceu a si mesma, tornou-se poder de afirmar, já é poder do super-homem, poder que anuncia e prepara o super-homem. "Vocês poderiam se transformar em pais e ancestrais do Super-homem: que isto seja o melhor de sua obra (73)!" Sacrificando todas as forças reativas, tornando-se "destruição impie­dosa de tudo o que apresenta caracteres degenerados e parasitários", passando para o serviço de um excedente da vida (74): somente aí a negação encontra seu acabamento. 

Gilles Deleuze
Nietzsche e a Filosofia

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