sábado, 22 de abril de 2017

MAX KOMMERELL



 A crítica em três níveis, comparáveis a três esferas concêntricas : o nível filológico-hermenêutico , o nível fisionômico e o nível gestual. O primeiro desenvolve a interpretação da obra , o segundo a situa ( tanto na ordem histórica quanto n natural ) segundo alei da semelhança, o terceiro resolve sua intenção  em um GESTO  (ou constelação de GESTOS ) . Pode-se dizer que todo crítico autêntico percorre esses três âmbitos, demorando-se mais ou menos , conforme sua índole , em cada um deles. A obra de Max Kommerell ---- certamente o maior crítico alemão do século XX depois de Walter Benjamin e talvez a última grande personalidade da Alemanha entre as duas guerras que ainda está por ser descoberta ----- se inscreve quase integralmente no terceiro âmbito , onde mais raros são os ''talentos supremos '' (entre os críticos do século XX, além de Bejamn, só Rivière, Féneon e Contini figuram nele plenamente ) . Mas o que é um GESTO ??? Basta percorrer o ensaio de Kleist , O POETA E O INVISÍVEL , para medir a centralidade e complexidade do tema do gesto no pensamento de Kommerell e a determinação com que ele reconduz sempre a intenção última da obra a essa esfera. O gesto não é um elemento absolutamente não -linguístico, mas algo que mantém com a linguagem uma relação mais íntima e sobretudo uma força que opera na própria língua, mais antiga e mais originaria, que a expressão conceitual corrente: o gesto linguístico (Sprachegebarde ) é como Kommerell define aquele estrato da linguagem que não se esgota na comunicação e a apreende, digamos assim , em seus momentos solitários : '' O sentido desses gestos não se realiza na comunicação.  O gesto, por mai s coercivo que possa ser para o outro , nunca existe unicamente para ele ; pelo contrário , só na medida em que existe tbm para si próprio é que ele pode ser tão coercivo p o outro . Mesmo um rosto sem testemunha tem sua mímica ; e é difícil saber se o que deixa em sua superfície a impressão mais profunda são os gestos com os quais ele se entende com os outros ou aqueles que lhes são impostos pela solidão e pela conversa consigo mesmo . Muitas vezes um rosto parece nos narrar a história de seus momentos solitários '' (Max Kommerell) . Nesse sentido, Kommerell pode escrever que ''a palavra é o gesto originário '' (Urgebarde) , do qual ''derivam todos os gestos singulares '', e que o verso poético é  um a essência e um gesto ---- a linguagem é ao mesmo tempo conceitual e mímica. O primeiro elemento domina a prosa, o segundo, o verso. Na medida em que não tem propriamente nada a exprimir e nada a dizer além do que é dito na linguagem , mas deve exprimir o próprio ser na linguagem  ---- o gesto é sempre gesto  de não conseguir compreender-se na palavra, é sempre ''gag'' no significado próprio do termo , , que indica em primeiro lugar algo que se mete na boca para impedir a palavra, e depois a improvisação do ator para remediar uma possibilidade de falar. Mas há  um gesto que se intromete de maneira feliz nesse vazio da linguagem e, sem proferi-lo, faz dele a morada miais própria do homem : aqui, a perda se torna dança, e o ''gag'', mistério.  No livro sobre Jean Paul , para alguns sua obra prima , Kommerell delineia a seu modo essa ''dialética do gesto '' : ''O início é um sentimento do eu que, em todo possível gesto e especialmente em cada gesto próprio, experimenta algo de falso , de uma deformação do interior , em relação à qual toda fiel representação parece uma blasfêmia contra o espírito ; e que olhando-se ao espelho, percebe um panfleto colado aos ombros, que lhe foi incorporado e, olhando para fora, vê com espanto e consternação nos rostos de seus semelhantes apenas um montão de máscaras cômicas --- a incongruência entre aparência e essência e o fundamento   tanto do sublime como do cômico ; o corpo , como signo ínfimo , indica o indescritível '' (M.Kommerell ) . Ao gesto exasperado de Jean Paul , Kommerell contrapõe o gesto goethiano, que guarda em um símbolo o enigma de suas personagens.  ''Muito raramente , e só para a encantadora desmesura de seus dois demônios femininos, Goethe toma excepcionalmente a iniciativa de um gesto que compete unicamente a eles. É um gesto que é repetido e que contém  de algum modo a pessoa, seu símbolo . O assistente descreve de que modo Otília recusa qualquer coisa que se exija dela : ''Aperta as mãos , erguendo-as no ar , depois as leva ao peito , enquanto se inclina um pouco para a frente e fixa com um tal olhar quem a persegue que este renuncia de boa vontade a tudo que desejava dela ''. De igual modo, diz-se de Mignon que ela põe a mão direita no peito , a esquerda na testa , e se inclina profundamente. Com meios tão simples, Goethe se apodera de uma natureza que vive nas margens do humano.  Mas seus gestos não são excessivos, como os de Jean Paul, mas plenos de contenção, e guardam em si o enigma contemplativo da figura. 

K.M.

4 comentários:

  1. a CRÍTICA é apenas a recondução da obra à esfera do gesto --- -esfera situada além de toda psicologia e, em certo sentido, além de toda interpretação . Ela não desemboca nem em uma história literária nem em um teoria dos gêneros, mas antes em um palco no qual , como no teatro de Oklahoma ou no Gran Teatro del Mundo, de Calderón (a quem é dedicado o último trabalho crítico de Kommerell, os Beitrage zu einem deutschen Calderón ) as obras, entregues a seu gesto supremo , como criaturas imersas na luz de um momento bíblico revelatório, sobrevive à ruína de seu invólucro formal e de seu significado conceitual. Acontece-lhes o mesmo que às figuras da Commedia dellárte italiana, que tanto agradava a Kommerell: Arlequim, Pantaleão, Colombina e o Capitão se emanciparam entre eternamente entre realidade e virtualidade, , vida e arte , singularidade e generalidade ---- impossível ser mais preciso. No esboço no qual A CRÍTICA substitui a história literária, a Recherche ou a Comédia deixam de ser esse texto que o c´ritico só pode indagar para entregá-lo, intacto e inalterável, à tradição : elas são antes o GESTO que, nesse texto admirável, exibe apenas um gigantesco vazio de memória, apenas o GAG destinado a dissimular uma incurável falha da palavra.

    K.M.

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  2. Nas artes da linguagem ,o conceito de criação liga-se mais diretamente ao conceito de personagem ou persona . Mesmo quando o gênero se relaciona à fantasias surrealistas, essa representação nos convence de sua substância vital e do peso existencial de cada personagem. Há um peso quase tangível, uma perfeição orgânica nas ''personae '' que se encontram entre entre os personagens de Dante ou nas ordens celestiais de Milton. Os enigmas cognitivos e a dinâmica misteriosa do método narrativo inspirado que gera a força vital da personagem fictícia nos impressionam com sua evidência. Ulisses tomou forma pela primeira vezna voz de um rapsodo ; sua substância narrativa original era o AR VIBRANTE e o OUVIDO HUMANO ---- MAS O ULISSES de James Joyce surgiu primeiramente como uma sequência de signos alfabéticos num pedaço de papel : ''Majestoso, o gorducho Buck Mulligan apareceu no topo da escada, trazendo na mão uma tigela com espuma sobre a qual repousavam, cruzados, um espelho e uma navalha. Um penhoar amarelo, desamarrado, flutuando suavemente atrás dele no ar fresco da manhã. Ele ergueu a tigela e entoou : ----- Introibo ad altare Dei. '' Considerados materialmente, o homem de Ítaca e Leopold Bloom não são nada mais que um código de signos orais e escritos, uma combinação de símbolos, um arranjo de unidades léxico-gramaticais distribuídas ao longo de um texto de ondas sonoras . Emma Bovary é a resultante de uma quantidade determinada de tinta espalhada numa quantidade determinada de papel. Entretanto, a absoluta impertinência de tal definição é inversamente proporcional ao choque do ser que sua descrição tenta situar e tomar para si.

    K.M

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  3. ''Em S. Gimignano feri as mãos nos espinhos de uma roseira do jardim de George, onde despontavam em vários pontos flores extremamente belas ''. O livro aque Walter Benjamin se refere criticamente nessa carta ao amigo Gershom Scholem, de 27 de julho de 1929, é Der Dicjter als Fuhrer in der deutschen Klassik, a obra-prima de Kommerell, escrito aos 26 anos. A primeira edição é de 1929 e é ela que tenho aqui comigo. O costume tipográfico de Bondi, o editor do cenáculo de George ----- ela traz como selo a suástica (acruz unciforme e não simplesmente na forma maiúscula da letra grega gamma , como a que poucos aos depoisiria tornar-se o símbolo da Alemanha hitlerista ) que assinalava os ''Werke der Wissenschaft aus dem Kreise der Battler fur die Kunst (aí tinham saído, entre outros, osensaios de Gundolf sobre Goethe e George e o livro de Bertram sobre Nietzsche e Herrschaft und Dienst, de Wolters , que tinha sido o mestre de Kommerell em Marburgo.

    K.M.

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  4. Nietzsche é o ponto em que , na cultura européia, essa tensão polar para a supressão dos gestos, por um lado, e para sua transfiguração, por outro, alcança seu cume. Só como um gesto em que potência e ato, natureza e maneira, contingencia e necessidade se tornaram indistinguíveis (e unicamente como teatro ) é inteligível o pensamento do Eterno Retorno. ASSIM FALOU ZARATUSTRA e o balé de uma humanidade que perdeu seus gestos. E quando a época se deu conta disso, então (tarde demais !) começou a tentativa precipitada de recuperar ''in extremis '' os gestos perdidos. O romance de Proust, Joyce, e outros ; Pascoli, Rilke, ; e por fim até o cinema mudo traçam o círculo mágico em que a humanidade procurou pela última vez evocar o que estava a lhe escapar das mãos de uma vez por todas. Durante os mesmos anos, Aby Warburg empreendeu as investigações que só a miopia de uma história da arte psicologizante pôde definir como ''ciência da imagem '', quando na verdade elas estavam centradas no gesto como cristal de memória histórica, sua tendência para se ''cristalizar '' em destino e a corajosa tentativa dos artistas de libertá-los através da polarização dinâmica.

    K.M.

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